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Guerra e censura: o neo-macarthismo russofóbico


Imagem: (Solaris) Mosfilm


A política de caça às bruxas do senador Joseph McCarthy, que paranoicamente perseguiu uma suposta infiltração comunista na sociedade artística e científica americana na década de 50, parece que está sendo fortemente ressuscitada nos últimos meses, por meio de uma espécie de neo-macarthismo russofóbico ou putinfóbico.


Hoje, assim como ontem, o mesmo clima macarthista, obtuso e fanático está se propagando pelo mundo, envenenando diversas sociedades. Na Itália, o curso do escritor Paolo Nori, na Universidade Bicocca em Milão, que previa inúmeras palestras sobre as obras do famoso escritor russo Fiódor Dostoiévski, morto em 1881 (observe-se!), foi cancelado nesse primeiro semestre pelo próprio reitor. O argumento foi de “reestruturação e ampliação do curso” para “adicionar alguns autores ucranianos ao lado de Dostoiévski" (1). A ideia, segundo o reitor, é que deveria haver uma “contraprestação de pensamentos”, assim “se você fala de um autor russo, você também deve falar de um autor ucraniano”.


O pior é que tal posição castradora da arte russa da Universidade Bicocca de Milão não está isolada. No mês passado, o maestro russo Valery Gergiev foi demitido do cargo de diretor da orquestra do Teatro della Scala em Milão, após o próprio prefeito da cidade, Beppe Sala, também presidente da Fundação do teatro, ter solicitado a Gergiev “condenar veementemente e publicamente a invasão russa à Ucrânia, sob pena de não poder se apresentar mais no teatro” (2). Nessa mesma direção, diversos dos seus concertos foram cancelados e o maestro regerá mais (ou não regerá) a Wiener Philharmoniker durante a turnê norte-americana do próximo verão no Carnagie Hall de Nova York, assim como a Munchner Philharmoniker, onde é maestro principal desde 2015.


Seguindo o mesmo modo repressivo de censura da arte russa, cineastas e filmes russos foram barrados do Festival de Cannes de 2022, na França (3), e a Academia Europeia de Cinema (EFA) excluiu artistas russos do European Film Awards 2022. Além disso, também cortaram relações com a Rússia diversas instituições artísticas na Grécia, nos Estados Unidos, na Inglaterra e, também, no Brasil, onde até a gastronomia foi prejudicada por essa cultura do cancelamento.


O caso do Museu Hermitage russo é digno de nota também. Diversos parceiros e patrocinadores europeus e americanos cortaram relações com o Museu (4) nas últimas semanas, alegando que seu diretor não condenou publicamente a guerra – algo que seria um crime sob a lei de censura russa aprovada no início de março, que prevê penas de prisão de até 15 anos para a disseminação de “informações falsas” sobre os militares russos.


Como vimos na década de 50, durante o período macarthista, a censura de artistas ou de uma determinada cultura artística não é algo novo. O que causa espanto é a utilização de idêntica política danosa mais de 70 anos depois, desrespeitando e violando nossos tão caros valores fundamentais universais que buscam a paz e a democracia.


Tanto a liberdade de expressão artística como a proteção e a defesa da plena participação de qualquer cidadão na vida cultural são princípios fundamentais universais defendidos e reconhecidos, tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), como no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).


Nesse sentido, ao contrário do apoio a uma política repressiva censurando arte e artistas, devemos recordar que é direito de todo o cidadão, independentemente de sua nacionalidade, origem, etnia, religião e até mesmo de sua posição política, desde que não afrontem o princípio da dignidade humana, a participação na vida cultural, o benefício das artes e à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor (5).

Nesse sentido, cabe indagar até quando vamos ignorar direitos fundamentais promovendo a censura escancarada da arte e dos nossos artistas. As instituições culturais, que vivem do trabalho artístico e deveriam exatamente proteger seus artistas e defender a sua liberdade de criação, não podem ser subservientes à decisões e às forças políticas que promovem a discriminação e o ódio. Afinal, quando o fazem, acabam disseminando as mesmas ideias anti-liberdade que, paradoxalmente, estão tentando evitar.

*Anita Mattes é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone, conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e advogada do Studio MATTES

1. Veja denúncia do escritório Paolo Nori na sua página do Facebook:https://www.facebook.com/paolo.nori/posts/10225666432155005.

5. Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 15 do o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

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