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Federalismo truncado e cultura: uma roupa que não nos serve mais  


Artur Paiva é advogado, pesquisador, professor universitário, pianista, compositor e produtor musical. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCULT). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Presidente da Comissão de Direitos Culturais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Ceará, Subseção Sobral. Autor do livro “Patrimônio Cultural Imaterial: guerra entre Poderes e desproteção” (Editora Dialética). Sócio-fundador do escritório Paiva & Osterno - Advocacia 




O economista Eduardo Giannetti, em algumas entrevistas e palestras que proferiu, além de artigos de opinião que escreveu, usa a expressão “federalismo truncado” para se referir ao “intrincado sistema de arrecadação e transferência de recursos da União para Estados e Municípios, através do qual, além da baixa transparência e alto desperdício, diluem-se as competências e responsabilidades” [1].  


Segundo o escritor, tal modelo estaria estabelecido na própria Constituição Federal de 1988, mas suas origens remeteriam à nossa formação histórica. Nesse sentido, Giannetti cita Raymundo Faoro ao mencionar que “desde o primeiro século de nossa história, a realidade se faz e se constrói com decretos, alvarás e ordens régias”. [2] 


Olhando para nossos antecedentes institucionais, parece-nos que o Brasil já nasce “centralizado e regulamentado”, fruto de uma construção “de cima para baixo”. Ao longo dos séculos, a sociedade civil brasileira parece vir a reboque do aparato burocrático estatal (e não o contrário), o que é surreal.  


No âmbito da Cultura, a concepção de um “Sistema Nacional” foi concretizada por meio da Emenda Constitucional nº 71/2012 [3], que acrescentou o art. 216-A na Constituição Federal de 1988. [4]  


No “papel”, o Sistema Nacional de Cultura se autodenomina “colaborativo, descentralizado, participativo, inserido em um processo de gestão conjunta, democrática e pactuada entre os entes da Federação”. Mas o que se observa na prática é que o dito “pacto federativo” tem uma feição mais próxima de um “contrato de adesão com cláusulas leoninas” apresentado pela União Federal aos Estados e Municípios, sem o caráter “bilateral” que se espera de uma atuação conjunta e sistemática dos entes envolvidos.  


Humberto Cunha Filho menciona que a prescrição normativa do SNC cometeu grandes equívocos, destacando dois deles: a) engessamento do SNC, que seria o único sistema detalhado na Constituição, o que seria uma incongruência, uma vez que se trata daquele que deveria ser o mais flexível e adaptável dos sistemas, exatamente por se referir ao elemento potencialmente dinâmico da sociedade, a cultura; b) a designação e, mais que isso, o efetivo tratamento de “nacional” dado ao sistema da cultura, expressão historicamente ligada a modelos autoritários de Estado e incongruente com a perspectiva de diversidade cultural [5].  


Observa-se que o Sistema Nacional de Cultura é mais um sintoma do “federalismo truncado” tão criticado por Eduardo Giannetti. Nesse contexto, a União concentra o planejamento, define metas, assume o protagonismo político e técnico das políticas públicas. Por sua vez, Estados e Municípios, ainda que formalmente autônomos, são encarregados da execução com pouca margem de manobra e sem os meios suficientes (recursos, capacitação, aparato institucional).  


O resultado é uma cadeia de responsabilização difusa, metas não cumpridas, e um ciclo de frustração e descrédito nas políticas públicas culturais. A superação desse modelo, parece-nos, deve partir da quebra do paradigma brasileiro de “mudanças de cima para baixo”, assumindo a sociedade civil o protagonismo, fazendo com que o aparato burocrático estatal venha a seu reboque, provocando transformações “de baixo para cima”.  


De fato, um verdadeiro federalismo cultural precisa: a) garantir autonomia decisória, técnica e orçamentária aos entes federativos; b) promover cooperação intergovernamental horizontal, não apenas coordenação vertical da União; c) incentivar a produção de políticas culturais territorializadas, construídas a partir da escuta ativa das comunidades e de seus agentes culturais.  


Assim, parafraseando Belchior, acreditamos que o federalismo cultural truncado é uma roupa desbotada que não nos serve mais — talvez nunca tenha servido. É tempo de costurarmos, juntos, uma “nova roupa colorida": um federalismo real, vivo e coerente com a diversidade e os desafios da política cultural brasileira.


Notas:   


[1] Folha de São Paulo - Opinião - Federalismo truncado - 12/09/2014 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/185189-federalismo-truncado.shtml. Acesso em 28 de maio de 2025. 


[2] Folha de São Paulo - Opinião - Federalismo truncado - 12/09/2014 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/185189-federalismo-truncado.shtml. Acesso em 28 de maio de 2025. 


[3] BRASIL, 2012. Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012. Acrescenta o art. 216-A à Constituição Federal para instituir o Sistema Nacional de Cultura. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc71.htm . Acesso em 28 de maio de 2025. 


[4] Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. 


[5] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. A quem interessa um Sistema “Nacional” de Cultura. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/a-quem-interessa-um-sistema-nacional-de-cultura . Acesso em: 28 de maio de 2025 

 

 

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