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Entre Hiroshima e a superinteligência artificial: o desafio jurídico da paz 


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Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo, advogada, pesquisadora em Direitos Culturais, mestre e doutoranda em Direito pela UFPR, especialista em Gestão Cultural e em Captação de Recursos pela Universidade de Boston, membro do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais (IODA), membro associada do IBDCult, foi coordenadora do GT Artes da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR entre 2022 e 2024. Visiting researcher junto à Cátedra de Bens Culturais e Direito Comparado na Unitelma Sapienza

 

O último dia 6 de agosto marcou os 80 anos do lançamento da bomba atômica sobre a cidade de Hiroshima no Japão. O site Hiroshima for Global Peace (Hiroshima pela Paz Global) [1], da Prefeitura da cidade, informa que, mesmo com o desastre causado pela explosão - no qual se estima a morte imediata de 70 a 80 mil pessoas, houve mais 140 mil mortes posteriores como consequência da radiação, e ainda existem 12 mil armas nucleares no planeta.

  

Com essa informação, a Prefeitura de Hiroshima convida a quem acessa o site a refletir sobre a paz. Sigamos este convite, pela perspectiva do direito. Convém recordar que o direito não brota, mas se cultiva.  


Ainda que se busque um fundamento natural para a sua racionalidade, entende-se que o direito é um produto da cultura, fruto de um exercício legislativo participativo em um Estado democrático. No âmbito internacional, percebe-se mais claramente o quanto o direito não é absoluto, mas derivado de uma costura mais delicada, que envolve um alinhavar para a formação de consensos entre culturas diferentes.  


O desenvolvimento da energia atômica decorreu de avanços científicos e tecnológicos que demonstraram a capacidade de, pela fissão de átomos, gerar uma fonte de energia limpa e muito potente, como alternativa, por exemplo, a combustíveis fósseis.  

 

O aprimoramento da tecnologia possibilitou grandes benefícios. Conforme a agência de notícias Euronews [2], cerca de um quarto da energia europeia é de matriz nuclear. No entanto, o avanço tecnológico também foi incentivado para fins maliciosos, com usos ameaçadores à existência da humanidade, como a criação da bomba atômica.  

 

Este é um exemplo de que as tecnologias não são neutras, mas produtos culturais, derivados do esforço humano, cuja intencionalidade pode ser direcionada tanto a usos socialmente positivos como negativos. 

 

A energia atômica foi cultivada para se tornar também arma de guerra. A produção da bomba atômica, empreendimento alcançado e fomentado, sobretudo pelos Estados Unidos e pela Rússia, maiores potências econômicas e militares, durante o período da Guerra Fria, gerou um cenário de mútua destruição assegurada. Fria era a guerra incapaz de lançar suas armas nucleares, pois ambas as partes poderiam assegurar o aniquilamento total da vida na Terra.  

 

A consciência da ameaça e a intenção de promover o desarmamento e o uso pacífico da energia nuclear ensejaram negociações e acordos internacionais que possibilitaram a criação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1957, e a posterior elaboração do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), aberto a assinaturas desde 1968.  

 

Em que pesem todas as dificuldades das instituições e do direito internacional em coibir as ameaças à paz mundial, a AIEA e o TNP expressam o desejo e os esforços permanentes de diálogo e negociações bem como a opção pelo direito em detrimento da guerra.   

 

Exemplo mais recente da ambiguidade dos usos tecnológicos são as ferramentas de inteligência artificial (IA). Há um grande debate, cada vez mais pacífico, acerca do que uma IA é e será capaz de fazer. Já se verificam exemplos de IA generativas com capacidades extraordinárias, como o que se chama de Superinteligência Artificial. Há tarefas que a IA pode fazer como ou melhor que os seres humanos. Até que ponto se pretende avançar é outra questão. 

 

São inegáveis os benefícios alcançados pela IA, como ilustram os avanços em pesquisas científicas: o aumento da capacidade de produtividade e análise de dados; a otimização de processos; a entrega de experiências personalizadas entre outras infinitas possibilidades. O mundo hoje vive em um ecossistema onde a IA é recurso e instrumento de interação. Apesar disso, as IAs também apresentam usos negativos e a capacidade de oferecer riscos reais e catastróficos.  

 

No que diz respeito ao uso de IA para estratégias de guerra, reportagem publicada em fevereiro deste ano, pelo blog Direito e Políticas Humanitárias do Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Brasil (CICV) [3], informa sobre as oportunidades e os riscos do uso de IA em operações militares. Os Sistemas de software de Apoio à Decisão com IA (AI-DSS) podem, por exemplo, auxiliar em decisões rápidas e reduzir danos civis.  

 

Ao mesmo tempo, podem oferecer respostas enviesadas - com base em preconceitos, dados imprecisos, inseguros e imprevisíveis. A IA pode, também, planejar estratégias, prever resultados e realizar cálculos estatísticos de vitórias e derrotas. Porém, de igual modo, pode errar e dessensibilizar o poder militar, à medida que as atividades dos soldados se tornam cada vez mais virtualizadas ou as suas ações robotizadas.  

 

Ataques com o uso de IA têm sido realizados por Israel na Faixa de Gaza, como foi documentado, em jornais no mundo todo, descrevendo a tecnologia “Lavander” [4].  

 

Até o dia 27 de julho já se registravam mais de 60 mil mortes no território palestino, desde o início da guerra em 2023 [5]. A superinteligência artificial, capaz de agir autonomamente e sem controle, como nos alerta o historiador Yuval Harari [6], oferece riscos concretos à humanidade caso o seu desenvolvimento, usos e pesquisas não sejam regulamentados.  

 

A capacidade tática da IA não dispensa, portanto, a ação humana, sobretudo quanto ao julgamento ético e jurídico. A reportagem da CICV e a previsão de Harari nos chamam a atenção para a necessidade urgente de ações regulatórias, cooperação internacional e governança ética.  

 

Hiroshima, como lugar de memória, nos recorda da necessidade permanente de cultivar uma cultura jurídica pela paz. A autodestruição é ainda uma possibilidade, a guerra é ainda opção.  

 

As tecnologias podem trazer estratégias inovadoras tanto para fins militares quanto pacíficos, mas a sua infinita capacidade de inovação jamais dispensará o discernimento e o juízo humano para assegurar a permanência da vida na Terra ou, ao menos, a possibilidade de sua existência e usufruto dignos.  

 

 

 

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