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Direitos autorais e herança cultural intangível


Ato 1: Direitos Autorais


Nos festivais de teatro de Atenas, realizados a pelo menos 500 anos antes de Cristo, dos quais participavam dramaturgos como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, explorar a mesma temática não era um demérito aos poetas; com isso, ao contrário, eles ajudavam a fortalecer laços culturais comuns ou, como hoje dizemos, a herança cultural.


Dois milênios depois, o teatro elizabetano, temporalmente situado na transição dos 1500 para os 1600, ainda fornece o panorama da cultura como algo que comporta compartilhamentos livres. O mais famoso de seus representantes, Shakespeare, não era um criador de temas, mas um exímio “escultor” da palavra, um decodificador dos sentimentos e um expert das relações humanas.


Vivendo há mais de 100 anos antes do famoso Ato da Rainha Ana, de 1710, que pode ser considerado o documento inaugural do copyright, o Bardo ainda se deu ao prazer de participar de trabalhos coletivos, como foi o caso da peça “Thomas More”.


Os autores desta obra, supostamente em número de sete, vêm sendo paulatinamente identificados por testes de caligrafia, vez que nenhum deles a assinou como sendo exclusivamente sua. Depois disso, o direito autoral foi se aprofundando nas ideias de privatismo e, sempre que possível, de ativo financeiro, o que alimenta práticas de exclusividade, algo que limita muito o compartilhamento da herança cultural.

Ato 2: Herança cultural intangível


O que hoje mais fortemente associamos à ideia de herança cultural intangível tem origem quase inversa ao que foi relatado para os direitos autorais. Muitas das tradições que agora são valorizadas como legados comuns da humanidade eram, na origem, exclusivas de corporações, de instituições religiosas ou de específicos estratos sociais.


Significa que, nos primórdios, essas manifestações e modos de criar, fazer e viver, embora não fossem privatizados na acepção contemporânea, não eram, por outro lado, acessíveis a todos, vez que estavam envoltos em estruturas permeadas por valores como a hierarquia, o sagrado, o diferenciado, o único e o exclusivo.


É bem provável que a tecnologia, propiciadora da produção em escala; o advento da ideia de diversidade, sobretudo religiosa; a laicização e a supervalorização do que pode ser chamado de moderno, tenham facilitado a supressão dos controles sobre as atividades que hoje consideramos patrimônio cultural imaterial, deixando-as acessíveis aos que delas queiram e possam fazer uso identitário. Mas o que é mesmo que hoje consideramos como herança cultural intangível?


A resposta mais universal que atualmente temos vem da Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, de 2003, incorporada ao direito brasileiro, em 2006, e ao direito italiano, em 2007, para a qual o PCI, como regra, são práticas coletivas que conservam elementos identitários, transmissíveis entre gerações, as quais podem acrescentar seus contributos. Ao mesmo tempo, referidas práticas devem estar a serviço de elevados valores como o desenvolvimento sustentável, o equilíbrio ambiental, os demais direitos humanos, a diversidade cultural e os comportamentos que resultam da sua adoção.


Tais práticas se manifestam em particular nos seguintes campos: tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; expressões artísticas; práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e técnicas artesanais tradicionais.


Em nível internacional, o Brasil tem sete bens reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco; 2008: As expressões orais e gráficas dos Wajapis; e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano; 2011: Yaokwa, ritual do povo enawene nawe para a manutenção da ordem social e cósmica; 2012: Frevo: arte do espetáculo do carnaval de Recife; 2013: Círio de Nazaré: procissão da imagem de Nossa Senhora de Nazaré na cidade de Belém (Estado do Pará); 2014: Roda de Capoeira; e 2019: Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão.


No universo italiano, a Unesco reconhece os seguintes bens (11, até agora): 2008: Cantu a tenore: canto pastoril da Sardenha; e Opera dei Pupi: teatro de marionetes siciliano; 2012: Fabricação tradicional de violinos em Cremona; 2013: dieta mediterrânea; procissões católicas e seus grandes andores de ombros; conhecimentos e técnicas da arte de construir muros em pedra solta; 2014: Prática agrícola tradicional de cultivo do "vite ad alberello" (vinhas do mato) da comunidade de Pantelleria; 2017: Arte do pizzaiuolo napolitano; 2019: Alpinismo; Transumância, a condução sazonal de gado ao longo de rotas migratórias no Mediterrâneo e nos Alpes; Celebração do Perdão Celestino.

Ato 3: A proteção jurídica


A proteção jurídica da herança cultural da humanidade é mais tênue que a proteção política, o que se afirma tendo por base o Artigo 11 da Convenção para a Salvaguarda do PCI, segundo o qual “Caberá a cada Estado Parte: a) adotar as medidas necessárias para garantir a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território”, enfatizando o dever de “identificar e definir os diversos elementos do patrimônio cultural imaterial presentes em seu território, com a participação das comunidades, grupos e organizações não-governamentais pertinentes”.


Quando a convenção do PCI faz referência, no Art. 13, d, a “medidas de ordem jurídica” as correlaciona com outras de natureza “técnica, administrativa e financeira adequadas para” além de criar e fortalecer as instituições do campo, “garantir o acesso ao patrimônio cultural imaterial, respeitando ao mesmo tempo os costumes que regem o acesso a determinados aspectos do referido patrimônio”.


Assim, elementos como ancestralidade, que geralmente se relaciona com longo transcurso de tempo e este com domínio público; emanação do seio social se vincula com elementos comuns não passíveis de apropriação individual, isso cria justificáveis barreiras para o universo da propriedade intelectual, mas não impede certas aberturas, a depender da manifestação cultural em concreto e do ambiente em que ela se encontra.


Hermano Queiroz, ex-diretor do setor de PCI do Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural do Brasil, é autor de obra que indica “efeitos colaterais”, geralmente reconhecidos judicial ou administrativamente, em decorrência do reconhecimento da qualidade de patrimônio cultural.


É muito significativo o caso das baianas do acarajé, que conquistaram judicialmente o direito de vender seu produto nos estádios de futebol, durante a Copa do Mundo realizada no Brasil, rompendo com monopólio de empresas multinacionais de alimentos e bebidas.

Na Itália, um caso muito representativo da possibilidade de casar a salvaguarda típica do PCI com as que são próprias à propriedade intelectual é o a da produção de violinos de Cremona, na Lombardia, porque há um aspecto tradicional, por um lado, mas inovações produtivas e comerciais típicas dos tempos atuais que podem justificar patenteamentos, designações de origens e outros.

Ato 4 – Falso final


Por fim, deve-se ter em mente a regra geral para o tema posto, constante no Artigo 3 da Convenção do PCI, que trata da relação com outros instrumentos internacionais, segundo a qual não pode haver interpretação que, dentre outras coisas, “afete os direitos e obrigações dos Estados Partes em virtude de outros instrumentos internacionais relativos aos direitos de propriedade intelectual ou à utilização de recursos biológicos e ecológicos dos quais sejam partes”.


Essa é uma chave importante e ao mesmo tempo enigmática, cujo segredo precisa ser decifrado, não propriamente para separar joio do trigo, pois aqui não cabe essa metáfora do bem e do mal, mas para que se desenvolva a ideia de justiça, de cada um receber conforme lhe é devido.


Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral (IODA), Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP)

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