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Cota de tela e proteção do cinema nacional



O cinema como é conhecido atualmente é bem diferente de quando foi realizada a primeira projeção de imagens pelos irmãos Louis e Auguste Lumière em 1895, na cidade de Paris. O público pagou para ver o cinematógrafo em ação com o filme Arrivée d’un train em gare à La Ciotat (Chegada de um trem à estação da Ciotat), com menos de 60 segundos e o registro da chegada de um trem na estação e o desembarque dos passageiros.


A história das imagens animadas, contudo, não começa com os irmãos Lumière, pois existia a tradição da projeção das lanternas mágicas (século XVII), em que o público se divertia com imagens coloridas projetadas numa tela pelo foco de luz das chamas de querosene com o acompanhamento de vozes, músicas e efeitos sonoros. E nem a invenção da tecnologia que possibilitou captar as primeiras imagens e sons pode ser atribuída a uma única pessoa, pois consiste, em verdade, de uma reunião de esforços de diversos inventores (1).


O fato é que passado cento e vinte e cinco anos desde essa primeira exibição pública, o cinema consolidou-se como um grande negócio de entretenimento que movimenta cifras bilionárias num mercado dominado pelas produções hollywoodianas. O Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro de 2019 publicado pela ANCINE indica que no ranking dos 20 títulos de maior público no Brasil no período de 2009 até 2019, as produções dos Estados Unidos possuem 16 títulos, e apenas quatro produções são brasileiras (Nada a perder, Os dez mandamentos, Tropa de Elite 2 e Minha Mãe é uma Peça 2).


No entanto, o cinema não é apenas entretenimento e nem unicamente negócio sobre ganhar dinheiro, como mostrou Frédéric Martel no livro Mainstream (2) que versa sobre a geopolítica da cultura e das mídias no mundo, numa investigação que desvela uma guerra mundial pelos conteúdos. E nessa guerra cultural, uma importante arma usada pela indústria - mas também por governos - para influenciar questões internacionais (soft power) com a propagação dos seus valores culturais é o cinema.


Os Estados Unidos, nessa guerra, possuem o exército mais bem equipado e treinado. É difícil vencer Capitão América, Homem de Ferro, Capitã Marvel, Pantera Negra e quando se juntam para formar os Vingadores? É uma “Missão Impossível” vencê-los. O filme Vingadores: Ultimato foi sucesso de público ao ponto de monopolizar as salas de cinema no país na semana de lançamento, pois das 3.500 salas existentes, 3.139 exibiam essa produção da Disney, que gerou a renda de R$ 338.624.881,00, no ano de 2019.


O controle da indústria do cinema pelos Estados Unidos faz com que vários países, dentre os quais o Brasil, para proteger não apenas a sua indústria cultural, mas também valores e visão de mundo, adotem uma legislação que visa assegurar espaços nas salas de exibição para os filmes nacionais. É o que se convencionou chamar de cota de tela.


No caso do Brasil essa obrigação legal encontra-se prevista na Medida Provisória n. 2.228-1, cujo artigo 55 determina que “as empresas proprietárias, locatárias ou arrendatárias de salas, espaços ou locais de exibição pública comercial exibirão obras cinematográficas brasileiras de longa metragem, por um número de dias fixado, anualmente, por decreto, ouvidas as entidades representativas dos produtores, distribuidores e exibidores”. A cota de tela, que em 2014 foi considerada constitucional pela mais alta Corte Judicial brasileira, continua em discussão judicial perante o Supremo Tribunal Federal (RE n. 627.432).


O debate agora é sobre a concessão de efeitos para todos (erga omnes). O processo encontra-se na pauta para julgamento em 10 de março. Contudo, essa disputa em que o Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas alega que a cota de tela atenta contra a liberdade de iniciativa, atingindo o núcleo das suas atividades econômicas, deve ser travado em outro campo e em outra dimensão no âmbito do Poder Legislativo, porque se o Supremo Tribunal Federal demorar mais em decidir a questão ele terá que reconhecer a perda do objeto da ação, pois a validade da regra do artigo 55, objeto da contenda, foi estabelecida pelo prazo de 20 anos, a contar de 5 de setembro de 2001, logo referida cota apenas durará por mais 6 meses.


Há projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, dentre os quais o PL 5497/19 da Câmara dos Deputados e apensados (PLs 5597/19 e 5757/19), que prorroga a cota de tela até 2031. A justificativa para essa prorrogação é assegurar a presença de bens culturais brasileiros nas salas de cinema.


A cota de tela não é apenas sobre economia, mas é especialmente sobre valores culturais e visão de mundo, que tem no cinema um importante veículo de propagação. A proteção do cinema nacional não é apenas praticada pelo Brasil. Vários países a adotam como forma de proteger os seus valores e a sua cultura. É certo que a cota de tela não é suficiente por si só para estruturar a indústria cinematográfica nacional, mas é uma importante ferramenta que se justifica porque o cinema nacional ainda não possui um domínio mínimo do mercado.


Assim, o protagonismo da proteção do cinema nacional encontra-se nas mãos do Congresso Nacional, mas é importante registrar que cinema não é apenas entretenimento, e nem é somente recursos financeiros, mas é principalmente um campo mundial de disputa de conteúdo e de poder, e o Estado brasileiro não pode se esquivar da defesa da diversidade cultural albergada na Constituição Federal.

Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

(1) Para conhecer mais sobre a história do cinema: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.

(2) MARTEL, Frédéric. Mainstream: a guerra global das mídias e das culturas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.


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