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Considerações tributárias sobre o Fomento Cultural por meio de patrocínio



Fomento Cultural não é prestação de serviço! O presente artigo busca elucidar a controvérsia recorrente sobre a incidência tributária em projetos culturais e cujo desconhecimento tem prejudicado a devida utilização destes recursos para sua finalidade precípua. Recursos de premiação para entidades de terceiro setor, recursos oriundos de termo de fomento, patrocínio para projetos culturais e até mesmo recursos aportados para consecução de projetos aprovados pela Lei Rouanet têm sido indevidamente confundidos com prestações de serviço ou contratos administrativos e tributados indevidamente. Abordaremos neste texto especificamente a não incidência em relação a patrocínio, pois apesar de guardarem fundamentos teóricos similares suas especificidades mereceriam análises individualizadas.

O sistema jurídico brasileiro é repleto de inconsistências. Muitas destas partem de razões de ordem prática, afinal nem todos os legisladores têm a devida técnica, tampouco se debruçam adequadamente sobre problemas que não reputam essencial. Nesse sentido, apesar de direitos fundamentais, os direitos culturais parecem receber, inclusive da doutrina tradicional, uma atenção secundária, limitando-os, no âmbito brasileiro, a definição e a abordagens de dois artigos na Constituição brasileira de 1988 (1).


Esta incompreensão é refletida por meio de convicções de senso comum teórico (2) de procuradores, advogados e controladores cujas análises restringem-se a aspectos superficiais. A própria inexistência de um marco regulatório para o fomento cultural, acarreta aplicações de legislações inadequadas à realidade do fazer cultural. Trata-se de debate sobre a própria natureza jurídica do fomento. A Administração Pública é conceituada como o conjunto de pessoas jurídicas, órgãos públicos e agentes públicos que realizam a atividade administrativa, consistente em serviços públicos, fomento e polícia administrativa 3. Ou seja, fomento não se confunde com a prestação de serviços administrativos, razão pela qual são realizados em regra por mecanismos de isenção fiscal e por parcerias e não por contratos administrativos.


Sobre a incidência tributária em patrocínios voltados ao fomento cultural, a lógica é aplicável tanto para recursos executados diretamente pelo Estado como para patrocínios de empresas em projetos aprovados ‘na lei Rouanet’ ou outros mecanismos de isenção fiscal. Aqui, em que pese a posição da Receita Federal por meio de Consulta no 141/2016, que dispõe sobre valores recebidos a título de patrocínio para eventos particulares com publicidade oferecida como contrapartida, a consulta analisa uma operação de venda de serviços de publicidade, razão pela qual não há que se falar, no caso de fomento cultural, em incidência por falta de fato gerador. Para o fisco, o tributo será devido quando se caracterizar como operação de prestação de serviços de publicidade.


Faz-se mister enfatizar que os recursos de fomento cultural têm natureza de recurso público, nos moldes da decisão do Tribunal de Contas da União (4). O recurso é público, pois, apesar de depositado na conta do proponente – pessoa jurídica de direito privado - não pertencem ao mesmo com livre disponibilidade, mas estão vinculados à consecução da finalidade estabelecida por meio de plano de trabalho. Entender diferente, obrigaria o Estado a permitir à entidade patrocinada ter lucro, utilizar dele de maneira livre e seu processo de contratação deveria ser a licitação. Todavia, estes instrumentos possuem via de regra natureza de instrumento congênere à convênio.


Eis outra questão central – a transferência de recurso de patrocínio em sede de fomento não se dá por contrato administrativo (natureza prestacional - obrigacional), mas por instrumento congênere à convênio (natureza de parceria). Na primeira hipótese, caso de prestação de serviços públicos, o Estado tem o objetivo de garantir o interesse público como razão da contratação e o particular o interesse legítimo no lucro, no auferir renda. Já nas parcerias tal possibilidade é vedada, pois o objetivo de ambos, no caso da cultura, é o fomento destas atividades de interesse da sociedade. Ou seja, os patrocínios a projetos culturais vinculados a um plano de trabalho representam fomento cultural, natureza jurídica de parceria e não de contrato administrativo.


Mesmo para os casos de patrocínio por empresas privadas por mecanismo de isenção fiscal ou outras formas de parceria, o uso daqueles recursos públicos está vinculado a um plano de trabalho que pré-determina como pode ser gasto. Nestas parcerias ambos os parceiros visam o desenvolvimento de ações de interesse público. O patrocínio cultural em questão não tem animus comercial. Discussão por si suficiente para compreender as não incidências. Ora, o pressuposto do conceito de renda para efeito de incidência tributária, consoante disposto no art. 42 do CTN e no art. 219, parágrafo único, do Decreto 3000/1999, pressupõe o ingresso de ganho ou rendimento de capital disponível. Observemos que esta questão – apesar da posição da Receita Federal por meio de Consulta no 141/2016, é pacífica no âmbito judicial:

Tributário - Ação Anulatória (IRPJ/CSLL e PIS/COFINS) - Entidade beneficiada com verba de patrocínio/ Incentivo da Lei “Rouanet” (Art. 23, II, da Lei nº 8.313/91) - Acréscimo Patrimonial (Art. 43/CTN) Inexistente - Não caracterização como receita bruta – Verba Estranha ao conceito de venda de mercadoria/serviços (Lei Nº 9.718/98) - Apelação provida: pedido procedente. [...]. 2- Dado o objeto social da autora, produtora de eventos (artísticos, culturais ou recreativos), seus serviços (constantes do projeto) foram, após exame do órgão competente, enquadrados como culturalmente incentiváveis, o que ensejou, aprovado/acompanhado o projeto pelo Poder Executivo, a percepção do benefício pecuniário, cujo valor em si receita tributável (IRPJ/CSLL) não é, já pela circunstância de que, dentro da ideia conceitual de fato gerador do art. 43/CTN ("a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica"), ela não ostenta o caráter de livre aplicação típica do patrimônio/disponibilidade (econômica ou jurídica) adquiridos (de modo definitivo ou incontrastável), pois o montante, não apenas é liberado na exata contrapartida da execução do projeto, como as eventuais sobras são devolvidas ao Fundo, depositadas em separado das demais movimentações bancárias do incentivado/patrocinado, o que denota que a verba gera específica aquisição/disponibilidade condicionada ou limitada. [...]. (5)


Ou seja, quando não houver possibilidade de lucro, não será possível falar em prestação de serviço, o patrocínio de particulares para fins de execução de plano de trabalho de projeto Cultural é situação de não incidência de fato gerador. Ratificamos que, de acordo com o art. 43 do CTN, o IR tem como fato gerador a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos.


Segundo Hugo de Brito Machado: “não há renda, nem provento, sem que haja acréscimo patrimonial, pois o CTN adotou expressamente o conceito de renda como acréscimo” (6). Reitera-se: os valores recebidos pelos proponentes selecionados deverão cobrir, única e exclusivamente, os custos das atividades previstas na Proposta de Plano de Trabalho.


Desta forma, “o valor percebido para efeito de incentivo ou patrocínio no âmbito da Lei Rouanet não se confunde com a ideia de acréscimo patrimonial inerente ao fato gerador do imposto de renda e, tampouco, assemelha-se a faturamento” (7). E registre-se, porquanto, que da mesma forma nos casos de fomento direto do Estado por leis de patrocínio, desde que vinculados a um plano de trabalho não possuem natureza de prestação de serviço, razão pela qual a incidência de tributação é indevida e a cobrança de “notas fiscais” e recolhimentos exigidos por parte de órgãos da Administração Pública pode – e deve ensejar – ação de ressarcimento do proponente do projeto cultural contra o Estado, sem prejuízo de perdas e danos. É preciso enfrentar o Leviatã por meio da Justiça, espaço cada vez mais central para a efetivação de direitos fundamentais culturais.


*André Brayner: Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor. Professor de Direito. Diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)


(1) CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília Jurídica, 2000.

(2) STRECK, Lenio Luiz et al. “Hermenêutica constitucional” e senso comum teórico dos juristas. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 6, n. 19, p. 237-261, 2012.

(3) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. Forense, 2021.

(4) Acórdão nº 1285/2008; acórdão 1.988/2003-1a Câmara e acórdão 1.630/2004-Plenário

(5) AC 0012173-36.2010.4.01.3300, Desembargador Federal Luciano Tolentino Amaral, TRF1 – Sétima Turma, e-DJF1 04/05/2012, p. 252

(6) MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

(7) Proc. 1003721-14.2020.4.01.3803/ 3ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Uberlândia-MG. Juiz de Direito Osmar Vaz de Mello da Fonseca Júnior. Sentença




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