A necessidade de limites ao exercício da liberdade permeia a obra de pensadores clássicos, a exemplo de Hobbes, que concebe o Homem no “estado de natureza” como “naturalmente livre”. O resultado dessa liberdade hobbesiana é que os indivíduos podem fazer tudo, conforme o seu próprio juízo, que lhes pareça adequado para a sua preservação. E se todos podem fazer tudo o que julguem adequado, o “estado de natureza” torna-se o campo da guerra generalizada, de “todos contra todos”. Logo, não é possível pensar a liberdade sem a existência de limites.
A teoria hobessiana do contrato social prefere uma sociedade submetida ao Estado Leviatã a permanecer no “estado de natureza”, em que todos são “naturalmente livres”. Contudo, nenhuma dessas opções é adequada para assegurar o respeito aos direitos fundamentais que se consolidaram mediante processos históricos de luta.
A liberdade é um dos bens jurídicos mais importantes dentre aqueles que compõem o arsenal de direitos fundamentais. A Revolução Francesa, entoando o lema liberdade, igualdade e fraternidade fez com que esses direitos fossem incorporados às constituições e leis dos países “civilizados”. As Constituições brasileiras sempre tiveram no seu rol de direitos a liberdade, ainda que nem sempre tenha sido respeitada, considerando os governos autoritários que se instalaram em diferentes momentos da nossa política.
O transcurso do tempo faz a definição de liberdade adquirir novas características e abranger novas dimensões. A Constituição brasileira de 1988 assegura, dentre outras, a liberdade de expressão artística, o que gera ao Estado um dever de abstenção (não criação de obstáculos ao exercício dessa liberdade). Mas, a liberdade não gera apenas deveres para o Estado, pois não é possível pensá-la sem um conjunto mínimo de direitos e deveres que tenham o escopo de promover o reconhecimento e o respeito à liberdade dos outros, e aos demais direitos fundamentais.
Contudo, mesmo com esse aparato constitucional, o exercício da liberdade de expressão artística situa-se num campo repleto de tensões e conflitos que envolvem casos de criminalização e censura como o de Gerald Thomas, o do “Querrmuseu” e da La Bête”.
Mas, muitas dessas tensões seriam evitadas se a sociedade brasileira fosse mais tolerante, não apenas no discurso falacioso da indiferença, mas também nas suas ações, e também se o Estado brasileiro não caísse na tentação de atribuir a si ou aos seus agentes a função de dizer o que é e o que não é arte. Esse papel definitivamente não cabe ao Estado.
Então, o que fazer quando a arte atinge a sensibilidade dos espectadores ou provoca repugnância ou quaisquer outras sensações ruins? A resposta é simples: negue ao artista aquilo que lhe é mais precioso: o aplauso, o riso ou a sua presença, mas não suprima dos outros o direito de terem suas próprias sensações sobre a criação artística. Esse talvez seja um passo determinante para se assegurar a liberdade de expressão artística.
A censura nunca é um caminho adequado, pois no campo da arte, a aferição do respeito aos limites do exercício dessa liberdade não deve ocorrer de forma prévia, impedindo a livre manifestação artística.
De Manaus (AM) para Fortaleza (CE), 26 de julho de 2020.
Allan Carlos Moreira Magalhães
Doutor em Direito, professor e pesquisador
com estudos no campo dos Direitos Culturais
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