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A nominação das escolas indígenas como direitos culturais



Esta foto de autor desconhecido está licenciado em CC BY-NC-ND


O ato de nomear pessoas e coisas é inerente ao ser humano, sendo considerado em relação àquelas um direito de personalidade, de forma que não se concebe uma pessoa que não possua um nome. É o que estabelece o Código Civil quando assegura que “toda pessoa tem direito ao nome”. Já em relação às coisas, nomeá-las tem um aspecto utilitário destinado a fornecer uma referência geográfica, mas também é invocar um sentimento de pertencimento, como o vínculo que se estabelece com o lugar de nascimento ou de vivências cotidianas, como a escola, a praça, o bairro, a rua, o teatro. E quando se nominam coisas com nome de pessoas, almeja-se homenageá-las, uma forma de reconhecimento do seu legado.


O fato é que nominar coisas, em particular os bens públicos, amolda-se, como ensinam Cunha Filho e Magalhães [1], na definição de patrimônio cultural ofertada pela Constituição de 1988. A Carta de Ouro Preto [2] para a Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural consolidada durante o Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural realizado nos dias 4 e 5 de abril de 2023 ratifica esse posicionamento ao inserir a nominação de espaços públicos no espectro do patrimônio cultural, reforçando esta natureza do ato de nominar, o que traz efeitos práticos na normatividade afeta ao tema, especialmente, numa República Federativa, como é o caso do Brasil.


A federação é uma forma de organização do Estado que prima pela autonomia dos entes que a compõem: a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Desta feita, a dimensão cultural do ato de nominação de bens públicos o afasta do campo meramente burocrático e de gestão administrativa e patrimonial, cuja competência é de cada ente federativo, para inseri-la no campo do patrimônio cultural, e, portanto, na competência legislativa concorrente [3] e, também, administrativa comum.


E falando em competência legislativa, existem vários Projetos de Lei [4] em trâmite (ou arquivados) na Câmara e no Senado que versam sobre a nominação de bens públicos. O mais recente é o PL nº 3148/2023 de autoria da Deputada Célia Xakriabá [5] que objetiva estabelecer procedimentos para nomear as instituições públicas de ensino indígenas, quilombolas e do campo.

O referido Projeto de Lei, na justificativa apresentada, destaca a dimensão cultural no ato de nomeação de instituições de ensino ao indicar que fazê-lo com base nas “tradições, lideranças, autoridades e figuras históricas que representam essas comunidades [indígena, quilombola e do campo] é um ato de reconhecimento e valorização de sua cultura, história e identidade”.

A natureza de patrimônio cultural do ato de nominação de bens públicos é justamente o que atribui ao Congresso Nacional a competência legislativa para disciplinar referida matéria, inclusive explorando a sua atribuição para a edição de normas gerais, pois, caso contrário, se a natureza for de mero ato administrativo, referido projeto de lei apenas abrangeria as instituições de ensino federais, e não atingiria seu escopo que é a nominação das escolas localizadas nas comunidades indígenas que, em regra, são municipais e/ou estaduais, cabendo a sua gestão administrativa e a denominação das mesmas a estes entes federativos.


O Projeto de Lei nº 3148/2023 confere ao ato de nominação de bens públicos (escolas indígenas) a natureza jurídica de patrimônio cultural quando atribui à comunidade o protagonismo na escolha dos nomes a serem atribuídos as referidas instituições de ensino, já que, conforme defendido em outra oportunidade, “a definição constitucional do patrimônio cultural tem na comunidade um dos seus elementos intrínsecos, ou seja, um bem é considerado como tal quando definido em função da comunidade e com a sua participação” [6].


Assim, as iniciativas de disciplinamento jurídico do ato de nominação de bens públicos, no caso das escolas indígenas, solidificam a sua natureza jurídica de patrimônio cultural, colocando-o no campo de interseção dos direitos culturais com o direito administrativo, em que a sua essência e os seus valores devem ser aferidos sob o espectro dos direitos culturais, cabendo ao direito administrativo os contornos formais destinados a veicular na esfera da administração pública o protagonismo das comunidades na nominação dos bens públicos.


Espera-se, portanto, que o Congresso Nacional vislumbre a relevância cultural do ato de nominação dos bens públicos e compreenda o seu papel na edição de normas gerais para a proteção do patrimônio cultural dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, instituindo um novo instrumento de acautelamento e preservação dos bens culturais presente no ato de nominar bens públicos como as escolas indígenas, assegurando às respectivas comunidades o seu protagonismo.


Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Dialética-SP)


Notas


[1] CUNHA FILHO, Francisco Humberto; MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. A natureza jurídica do ato de nominação de espaços públicos. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 58, n. 232, p. 11-32, out./dez. 2021. Disponível em: https://www12.senado. leg.br/ril/edicoes/58/232/ril_v58_n232_p11 . Acesso em: 20 jun. 2023.


[2] Cf. no sítio eletrônico do Seminário Nacional de Direito do Patrimônio Cultural: disponível em: https://www.patrimonioculturalbrasil.org/carta


[3] Cf. Art. 24, VII e IX da CF/88.


[4] Cf. o PL nº 4.782/2016, que tem os seguintes projetos apensados: PLs nºs 6.255/2016, 8.106/2017, 1.359/2019, 2.165/2019, 4.122/2020, 2.713/2019, 5.923/2019, 3.152/2020, 5.296/2020, 2.901/2019, 4.684/2020 e 1.275/2019.


[5] CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL n. 3148/2023. Dispõe sobre a autonomia das escolas indígenas, quilombolas e do campo para nomear as instituições públicas de ensino em seus territórios. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2290645>. Acesso em 21 jun. 2023.


[6] MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. Patrimônio cultural, democracia e federalismo: comunidade e poder público na seleção dos bens culturais. Belo Horizonte: Dialética, 2020. p. 289







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