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A minha primeira vez com o Ecad ou o dia em que tive aula de Direito Autoral com Lobão

Atualizado: 5 de ago. de 2020

O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição - ECAD anunciou, no início do mês, que passará a cobrar os direitos de execução pública das lives patrocinadas.


O que mais chamou a minha atenção é que o ECAD convidou os “patrocinadores e promotores de lives” a arrecadar os direitos de execução e não as plataformas digitais, como já é (ou deveria ser ) feito regularmente no streaming, sobretudo após a decisão do STJ no caso ECAD versus Rádio OI FM.


Ainda estou tentando entender esse complexo tema – se é um bis in idem (uma vez que os valores referentes aos direitos de execução já são repassados pelas plataformas) ou se a cobrança é devida tal qual um show sem bilheteria – mas esbarrei na confidencialidade do acordo firmado entre o ECAD e o Youtube sobre execução pública de música, que é um documento central para se analisar esse assunto.


O Youtube possui todo um regramento interno de sua comunidade de usuários e produtores de conteúdo – tais como as disputas de copyright e as regras de desmonetização de canal – que não necessariamente correspondem aos dispositivos da Lei de Direitos Autorais – LDA, até porque a LDA foi pensada para regular o mundo analógico, um mundo que não existe mais.


No meio da polêmica percebi que alguns produtores de conteúdo digital sequer conheciam o ECAD, até então, considerando que a obrigação de repassar a remuneração advinda dos direitos de execução pública era das plataformas digitais, não dos produtores de conteúdo ou das empresas patrocinadoras da lives.


Revisitando os métodos de cobrança praticados na gestão coletiva, lembrei da minha primeira vez e única experiência como produtor cultural junto ao ECAD. Foi inesquecível.


Em 2004, quando eu integrava o movimento estudantil, participei da produção da Calourada do DCE da Universidade de Fortaleza. A atração principal do evento era o Lobão, contratado por um módico cachê, em razão do ostracismo que vivia o artista, naquela época, em decorrência do seu conflito com as majors.


Para quem não lembra, no final dos anos noventa, Lobão criou um selo independente, Universo Paralelo, que produzia e distribuía os seus discos pelas bancas de jornais, um modelo de negócio que deixou muitas empresas do entretenimento irritadas, boicotando, como retaliação, boa parte da produção do artista, como, por exemplo, o soturno disco “A vida é Doce” (1999), um dos melhores de sua discografia.


Minutos antes de Lobão subir ao palco montado no estacionamento da UNIFOR, um representante do ECAD bateu na porta do DCE, solicitando o pagamento pelas execuções públicas do espetáculo.


Nessa hora eu, que já tinha iniciado minhas pesquisas no âmbito dos direitos culturais, fui chamado para negociar.


Corri à sede do DCE e abri a porta, esbravejando um:

“isso é absolutamente inconstitucional!”.


Qualquer estudante do terceiro período do curso de Direito faria o mesmo que eu, não me julguem.


Mas nessa hora Lobão entrou na conversa, nos chamou no camarim improvisado na sala da diretoria, e deu uma aula de direito autoral.


Explicou que o simbólico cachê que o DCE estava pagando não se referia aos direitos de execução pública e que o ECAD, embora ele não o tivesse chamado, estava ali em seu nome, empreendendo uma gestão coletiva dos direitos autorais. E que era, sim, uma cobrança legal, segundo a Lei 9.610/98 – Lobão sabia de cabeça o número – e olhando para mim com sua ironia característica disse que o ECAD era constitucional.


Depois dessa aula, Lobão falou que, por ser o titular de sua obra intelectual, poderia fazer uma carta, ali mesmo, de próprio punho, pedindo para que o ECAD se abstivesse de cobrar os direitos de execução pública, em deferência ao movimento estudantil.


Fizemos a carta e entregamos ao representante do ECAD que “liberou” o show, embora Lobão também ter nos explicado que ele não teria poder de polícia para embargar o evento.


Lobão fez uma performance incrível, só voz e violão, intimista, embora os alunos estivessem muito mais interessados em outras bandas de sucesso que tocavam no mercado de hits das rádios.


Lobão estava nas bancas e nos festivais universitários. Decadente com elegância.


Até hoje penso naquele Lobão, marginal, quando tenho que explicar aos meus alunos de produção cultural o que é o ECAD dentro do sistema de direitos autorais, apenas adaptando aos novos modelos de negócio promovidos pela transformação digital.


Agora é só um pouco diferente: o ECAD bate na porta de eventos virtuais.



> Imagem: Frame do Filme “Three Little Pigs” de Walt Disney, 1933. Domínio Público.



Mário Pragmácio

Professor do Departamento de Arte da UFF

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