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A humanidade dos animais não humanos

Atualizado: 5 de ago. de 2020

O calendário enquanto sistema de medida de tempo possibilita uma ação curiosa: o de eleger um dia para se homenagear acontecimentos, ações, práticas, fatos, pessoas, profissões, enfim, tudo aquilo que seja considerado importante para um determinado grupo. Essa prática é tão ampla e generalizada que são raros os dias que não se comemora algo, e também aqueles que sejam exclusivos para um único festejo.


O dia do abraço é uma dessas datas comemorativas cuja dinâmica da sua celebração é simples: abraçar - verbo transitivo direto que significa envolver algo ou alguém com os braços. Há inclusive voluntários que se dispõem a abraçar desconhecidos nas ruas, distribuindo “Abraço Grátis” ou “Free Hugs”, como é internacionalmente conhecida. O isolamento social, contudo, não impediu que referida data fosse comemorada, mas com moderação e criatividade, como a adoção de abraços virtuais, mas também incluindo nessa festa os animais não humanos que devem participar como alguém envolvido pelos braços de outro, e não como algo.

Se algum estudante de direito no Brasil for questionado se os animais não humanos são sujeitos de direito (alguém) ou objeto de direito (algo), a resposta é rápida, certeira, sem rodeios e com a autoridade de quem conhece a lei, afirmará: são objetos de direito. Essa resposta é questionável, cujo eventual equívoco pertence mais ao sistema jurídico e aos pressupostos filosóficos que o sustentam, do que ao próprio aluno que replicou referido pensamento, inclusive porque lhe foi ensinado dessa forma, por quem igualmente aprendeu assim.


A condição jurídica dos animais não humanos é complexa e ainda não definitivamente resolvida. Mas ela é repleta de situações no mínimo curiosas, como narra Luc Ferry no seu premiado ensaio: A nova ordem ecológica. É inimaginável, atualmente, a instauração de um processo perante um juízo episcopal (juiz) em face de uma colônia de gorgulhos (réus), a quem os camponeses (autores) acusavam de destruir seus vinhedos, pleiteando (pedido) a excomunhão dos insetos ou outras medidas apropriadas para aplacar a cólera divina? Mas, se litigar contra os gorgulhos é inusitado para uma mente cartesiana, imagina perder a demanda, pois o juiz episcopal entendeu (sentença) que os animais por terem sido, assim como os Homens, criados por Deus possuem os mesmos direitos destes a se alimentar.


O inusitado litígio, contudo, revela uma proto-igualdade entre seres humanos e não humanos, mas que não terá espaço diante do antropocentrismo que atribui direitos apenas aqueles. A natureza e com ela os animais não humanos são na visão cartesiana subjugados aos desígnios do Homem, visto como o senhor supremo de todas as coisas, e o único com aptidão para ser sujeito de direitos.


O humanismo kantiano enxerga, contudo, uma conexão entre os animais humanos e os não humanos, vislumbrando naqueles o dever ético para com estes de não lhes infringir sofrimento desnecessário ou inútil. Este espírito humanista de alguma forma influenciou o constituinte originário, pois ele veda quaisquer práticas que submetam os animais a crueldade. Mas, o constituinte derivado deu uma de falso esperto, quando modifica a Constituição (EC n. 96) para estabelecer que não são cruéis as práticas desportivas que utilizam animais, se elas são registradas como patrimônio cultural imaterial.


Essa alteração constitucional deixa o humanismo kantiano vazio de sentido ao considerar que o registro de uma prática cultural como patrimônio, mesmo que acarrete maus-tratos aos animais, não consistiria num sofrimento desnecessário ou inútil, pois se estaria protegendo uma manifestação cultural. Trata-se de um pensamento essencialmente antropocêntrico e que fecha os olhos para a crueldade a que os animais são submetidos. Além disso, o legislador esquece que nem toda manifestação cultural deve ser protegida e alcançar a condição de patrimônio cultural, especialmente, se ela contraria princípios e valores constitucionais.


Mas, nem tudo parece estar perdido! A cada dia se discute mais o status jurídico dos animais não humanos e se consolida a ideia de atribuir a eles um valor intrínseco que os distanciam da condição de objeto (algo) e os aproximam da condição de pessoa (alguém) apta a ser titular de direitos, dentre os quais o de não ser submetido a crueldade.


A diferença entre os animais não humanos e humanos é significativa especialmente em razão destes possuírem cultura, o que demanda um esforço teórico e prático para a construção do estatuto jurídico daqueles. Apesar disso parece claro que os animais não humanos não são e não podem ser tratados como meros objetos.


E para definitivamente afastar quaisquer dúvidas de que os animais não humanos não são coisas ou objetos, não são autômatos, abrace-os não apenas no dia do abraço, mas sempre que quiser envolver alguém com os seus braços. E reflitam se terão a mesma sensação abraçando o fogão ou a geladeira da sua casa. E por fim pensem sobre o quanto a forma como tratamos os animais não humanos é reveladora de quem nós somos e da nossa própria humanidade (ou desumanidade).


De Manaus (AM) para Fortaleza (CE), 03 de junho de 2020


Allan Carlos Moreira Magalhães

Doutor em Direito, professor e pesquisador

com estudos no campo dos Direitos Culturais

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