"Gargantua" - Honoré Daumier
Recentemente, ocorreu um fato tão chocante que conseguiu tirar a pandemia do Covid-19 das principais manchetes de todos os jornais franceses: a decapitação, em plena luz do dia, do professor de História Samuel Paty em Conflans-Sainte-Honorine - região da grande Paris. O motivo principal desse crime bárbaro foi o fato de o professor ter ilustrado suas aulas de Moral e Cívica com as caricaturas do profeta Maomé.
Contudo, não é a primeira vez que a caricatura francesa se torna centro de polêmica ou motivo de tragédias semelhantes. Inúmeros são os exemplos de ataques violentos a cidadãos, jornais e institutos, os quais tiveram como estopim a utilização desse tipo de expressão humorística.
Antes dos diversos atentados ao hebdomadário francês Charlie Hebdo, que culminaram no massacre de 2015, houve incêndios criminosos no jornal dinamarquês Jyllands-Posten e depois um tumulto nas eleições francesas de 2017, por causa da caricatura do presidenciável Emmanuel Macron vestido como um banqueiro de nariz adunco, usando uma cartola e com um charuto na boca e uma foice na mão. Ainda, em agosto desse ano, uma caricatura foi publicada em um jornal de extrema-direita, na qual a deputada negra Danièle Obono possuía uma coleira de ferro no pescoço, o que gerou uma onda de indignação entre os políticos franceses. Por fim, a mais recente caricatura do Presidente Erdogan provocando uma crise diplomática entre a França e a Turquia.
Entretanto, deve-se ressaltar que essa forma de expressão satírica não é novidade. A utilização da caricatura como escárnio político e social possui uma longa tradição na França. Tendo origem na Grécia antiga, a caricatura faz parte da cultura francesa desde a Idade Média (1) e atingiu o seu auge no período da Revolução de 1789, quando houve “uma explosão de caricaturas” (2) . Posteriormente, voltou a assumir destaque no ano de 1830, o qual ficou conhecido como a “era de ouro da caricatura”. Nessa época que foram fundadas as revistas La Caricature e Le Charivari, que publicavam famosas caricaturas de Honoré Daumier e Philipon, esse último preso por suas sátiras do Rei Luís Filipe I. As duas mais célebres caricaturas desses dois artistas, que marcaram a época, foram a Gargantua, que representava o rei devorando os recursos do povo ao mesmo tempo que corrompia deputados, e a Les Poires, que continha quatro imagens de peras (uma gíria para tolos, na época) simulando uma metamorfose do rei degradado e impopular (3) .
"Les poires" - Charles Philipon
O caso Dreyfus, entre os anos de 1890 e 1900, também foi emblemático na história da caricatura francesa. A suposta traição à pátria do capitão Dreyfus, em razão da entrega de documentos secretos franceses ao Império Alemão, além de causar um conflito jurídico de grande impacto na imprensa e na opinião pública francesa no final do século XIX, resultou na criação de várias caricaturas notórias, assim como dois jornais satíricos para a ocasião, Psst (anti-Dreyfus) e Le Sifflet (pro-Dreyfus).
A caricatura foi, assim, consolidada como uma linguagem de expressão que possui como característica o exagero nos traços da pessoa. Desafiando os padrões tradicionais, além das formas de pensar e/ou os costumes de uma sociedade, tornou-se uma arma poderosa de expressão ideológica. Por meio desse instrumento, o autor difunde suas idéias e plasma seus valores, crenças e verdades (4) .
No Brasil, esse tipo de expressão é protegido pelo o Art. 5° da nossa Constituição como direito “fundamental”, diante da “livre manifestação do pensamento” (inciso IV) e da “livre [...] expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” (inciso IX). Nesse mesmo sentido, a Lei de Direito Autoral, apesar de não mencionar expressamente a caricatura, dispõe que “são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito” (art. 47).
No direito francês, a paródia, a sátira e a caricatura são protegidas pela lei francesa, não somente sob o princípio da liberdade de expressão, mas também do direito à informação, nos termos da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que prevê “A livre comunicação de pensamentos e opiniões é um dos direitos humanos mais preciosos (...)” (art. 11). Ademais, a caricatura é expressamente mencionada pelo Código de Propriedade Intelectual (art. L 122-5) como exceção ao direito de imagem exclusivo de qualquer indivíduo. Assim, qualquer pessoa poderá ter sua imagem usada para fins de caricatura sem necessidade de autorização prévia. Da mesma forma, o autor de uma obra divulgada não pode proibir a paródia, o pastiche e a caricatura sobre esse bem.
Obviamente que, embora contemplada formalmente pela legislação, essa questão não é assim tão clara e definida na prática, pelo direito francês e até mesmo pelo direito europeu. Isso faz com que a relação entre o uso indiscriminado da caricatura (sob o argumento da liberdade de expressão) versus o respeito a outros direitos fundamentais seja complexa e muitas vezes conflitante. Seus limites são continuamente contestados, revistos e redefinidos. Contudo, uma coisa é certa: apesar dos Tribunais franceses e europeus já terem decidido inúmeras vezes no sentido que a caricatura não deve degenerar em difamação, insulto, desprezo ou outra discriminação (5) , esse tipo de expressão satírica continuará, sem perder o vigor e a rigidez, a provocar rupturas, polêmicas e debates violentos, respeitando, dessa forma, a velha tradição francesa.
Anita Mattes
Advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, é cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay, mestre pela Université Panthén-Sorbone e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
(1) Rapide histoire de la caricature, Biblioteca Nacional Francesa, 2020. Documento disponível em: http://expositions.bnf.fr/daumier/pedago/02_1.htm
(2) Mais de mil e quinhentas gravuras satíricas entre 1789 e 1792 criando “um aparato de produção organizado”, ver A. DUPRAT, La caricature, arme au poing: l’assassinat d'Henri III, in Rev. Sociétés et représentations, n° 10, 2000, p. 105.
(3) Pourquoi l’art de la caricature est-il sacré pour les Français?, A. DUPRAT, 2020. Documento disponível em no site:
theconversation.com.
(4) C. ABREU. Dibujo satírico, dibujo humorístico, chiste gráfico y caricatura. In Rev. Latina de Comunicación Social, n. 36, 2000.
(5) Veja as decisões: TGI Paris, 1a câmera., 26/2/1992, Rev. Légipresse, n° 96, 1993; Cass., 2a câmera civ., 13/2/1991, Rev. JCP, IV, 1991; Cour d’appel de Paris, 4a câmera, 22/11/ 1984, Rev. Dalloz IR, 1985, p. 165; Cour d’appel de Versailles, 1° câmera, 31/1/ 1991, Rev. Gaz. Pal., 1992, p. 535.
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