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A Basílica de Sacré Coeur inscrita como monumento histórico francês

Seria um insulto a Le temps des cerises? Qual o valor da memória-histórica de um povo?

Voi che vivete sicuri nelle vostre tiepide case, voi che trovate tornando a sera il cibo caldo e visi amici: Considerate se questo è un uomo che lavora nel fango che non conosce pace che lotta per mezzo pane che muore per un sì o per un no. Considerate se questa è una donna, senza capelli e senza nome senza più forza di ricordare vuoti gli occhi e freddo il grembo come una rana d’inverno. Meditate che questo è stato: vi comando queste parole. Scolpitele nel vostro cuore stando in casa andando per via, coricandovi, alzandovi. Ripetetele ai vostri figli. O vi si sfaccia la casa, la malattia vi impedisca, i vostri nati torcano il viso da voi.


PRIMO LEVI



*Imagem: lynettelhm; CC BY


No final do ano passado, a Direção Regional de Assuntos Culturais da França (DRAC - Direction Régional des Afaires Cultures) (1), juntamente com a Prefeitura da cidade de Paris, anunciaram oficialmente, após parecer favorável da Comissão Regional do Patrimônio e Arquitetura (CRPA - Commission régionale du patrimoine et de l’architecture) (2), a decisão de inscrever a Basílica do Sagrado Coração (Basilique du Sacré-Cœur) como monumento histórico francês.


O processo administrativo de inscrição, iniciado em outubro de 2020, levará vários meses; contudo a intenção do DRAC é de concluí-lo ainda em 2021. A importância da inscrição da Basilique du Sacré-Cœur como monumento histórico vai muito além do reconhecimento institucional, consagrando interesse patrimonial, cultural e histórico do Estado no referido monumento. O ato promove ainda a garantia efetiva da conservação e manutenção do edifício em razão da facilitação na concessão pelo Estado francês de diversos subsídios econômicos em benefício ao proprietário do monumento, como financiamento de custo das obras de conservação e de restruturação e/ou suspensão do pagamento de alguns tributos sobre a propriedade, transmissão e ganhos. Ademais, para a Prefeitura, tal ato contribuirá ainda para a valorização econômica de diversos ofícios artesanais ligados à Basílica, bem como para um maior desenvolvimento do turismo parisiense e da influência cultural da França em escala mundial. (3)

Apesar de a inscrição nacional da Basilique du Sacré-Cœur ser um ato relevante para a economia e para o turismo da cidade de Paris, o assunto é polêmico e reabre uma velha ferida na memória parisiense. Esse enorme edifício católico, branco, imponente, situado no alto da colina de Montmatre e concebido pouco depois da Guerra Franco-Prussiana e da Comuna de Paris pelo arquiteto francês Paul Abadie, tornou-se um símbolo controverso em termos históricos, religiosos e até arquitetônicos. Para muitos parisienses, a sua construção, arquitetonicamente questionável, sempre foi vista como uma forma de provocação, já que teria sido erigida para expiar os pecados dos revolucionários que participaram da Comuna de Paris em 1871. (4)

A aprovação da construção da Basílica foi votada pela Assembleia Nacional francesa nos governos dos presidentes Adolphe Thiers e Patrice de Mac Mahon, responsáveis diretos pelo aniquilamento violento e sangrento da Comuna de Paris. Além disso, a escolha do local não poderia ter sido mais afrontosa, pois foi exatamente no norte de Paris - em Belleville, Ménilmontant e Montmartre em particular - que ocorreu, em 18 de março de 1871, a batalha mais importante e mais sanguinária da Comuna, em que as tropas de Adolphe Thiers derrubaram os canhões da resistência, confiscaram suas armas e mataram mais de 20 mil insurgentes.

Assim, para muitos franceses, o reconhecimento de tal monumento como patrimônio nacional seria um insulto adicional à República Francesa, à história da França e à memória histórica das lutas sociais do país. Tanto é assim que, recentemente, o deputado Sthépane Peu solicitou esclarecimentos ao Ministério da Cultura e aos seus representantes (5), lembrando que, em 1873, nos debates na Assembleia Nacional para a votação da construção do edifício, os monarquistas fizeram referência à Comuna de Paris, aos republicanos e aos communards como “fanáticos, bêbados (...), hostis a qualquer ideia religiosa. (...) e, a basílica seria assim concebida como o símbolo por excelência da anticomuna e um sinal tangível da ordem moral”.


O deputado aponta, ainda, em seu discurso, que é preciso lembrar que a Basílica foi e segue sendo vista como um desejo dos católicos reacionários de se impor contra a República e de obliterar a memória dos “pelo menos 20.000 communards que perderam a vida durante a semana sangrenta de maio de 1871, exatamente na região da colina de Montmatre”. O deputado, portanto, lamenta tal decisão do Ministério da Cultura e da Prefeitura de Paris, desejando que a revertam, em ato de respeito à memória do povo francês e dos valores republicanos de liberdade, igualdade, fraternidade e laicidade.


Nesse ponto, faz-se extremamente importante ressaltar que, ainda hoje, os descendentes das vítimas da chacina promovida pelo governo francês na repressão à Comuna de Paris e os simpatizantes contemporâneos do movimento não veem a malfadada Basílica como símbolo da memória, apesar de ter sido o principal lugar de sua batalha. Para eles, o único lugar que resta de memória do movimento é o Mur des Fédérés, o muro no cemitério Père-Lachaise onde muitos insurgentes foram perseguidos e alvejados a bala e onde estão enterrados mais de 1.000 insurgentes que ali foram fuzilados. É um local de peregrinação para os parisienses e defensores de movimentos sociais, até hoje.


A memória histórica de um povo tem como elemento essencial o respeito às vítimas, em particular no que se refere aos crimes contra a humanidade. Esse respeito se reflete no direito da sociedade de revelação da verdade na reconstrução da sua memória, da sua história e de sua identidade.


Primo Levi, em Se questo è um uomo, relata sua vida no Lager (campo de concentração) e a necessidade do não esquecimento das atrocidades a que foi submetido, contrapondo ao desejo nazista não somente da eliminação individual de cada judeu, mas também do momento histórico e da memória de suas barbaridades. No “campo de aniquilamento”, como chamava o autor, “extinguiam-nos, desde as nossas posses, família, até nosso nome, reduzindo-nos a um número”: “Nulla più è nostro: ci hanno tolto gli abiti, le scarpe, anche i capelli… Ci toglieranno anche il nome”. O objetivo era o de suprimir um povo, massacrando, ocultando, queimando e transformando seus corpos em fumaça, assim como sua memória, que é o repositório do ser social, do coletivo, dos passos que o gênero humano dá, formando seu legado para posteriores gerações (6).


O passado é tudo aquilo que pode ser lembrado, dentro de uma infinidade de acontecimentos pretéritos. Os monumentos históricos, conjuntos arquitetônicos e outros edifícios representam a preservação desse passado, da memória coletiva histórica e cultural da sociedade, possibilitando a reconstrução parcial de rupturas que a relação entre tempo e espaço nem sempre é capaz de conservar (7). Nesse sentido, poderia a Basilique du Sacré Coeur ser considerada um monumento elegível capaz de resgatar e representar uma memória coletiva da cidade de Paris ou se trata da representação de aniquilamento da memória dos que ali lutaram? E o interesse das pessoas que resistiram na Comuna de Paris nas colinas Montmatre defendendo um país republicano?


Para muitos, a Basílica remete a um genocídio do povo francês, relembrando-os, diariamente, de sua dor. Essas pessoas a veem como uma zombaria dos que se sagraram vencedores, como uma forma de tripudiar sobre os perdedores e de aniquilar a memória de sua dor.


O que está em questão, aqui, é a conservação da memória de não apenas um único lado, o que é relevante não somente para a preservação do passado (relembrar eventos, reconhecer e homenagear as vítimas), mas também para o presente (processos de cura e reconstrução da confiança entre as comunidades) e para o futuro (prevenção de mais violência por meio da educação e conscientização). Desconsiderar a relação histórica existente entre a Basílica e a Comuna de Paris seria uma violação à verdade histórica, ao conhecimento e aos direitos das gerações futuras, que ficariam sem entender por qual motivo seus familiares entoam, ainda hoje, a canção Le temps des cerises, música símbolo dos insurgentes da Comuna.


A distorção ou o esquecimento da memória de quem lutou e morreu pela causa do ser coletivo, que reivindicamos ser a negação das atrocidades pelas quais o mundo passou e passa, leva a um grande perigo. Se a memória dessa destruição seletiva cai no esquecimento, a sociedade se coloca à mercê de ameaças que ressurgem como forças bestiais. Um exemplo claro é o Brasil de hoje, em que não se dá a devida importância à memória das atrocidades cometidas pelo governo ditatorial militar nas décadas de 60-80, levando desavisados a saírem às ruas fazendo apologia da ditadura e convocando a sua volta, defendendo a supressão da liberdade de expressão e de inúmeros outros direitos fundamentais.


A conservação do patrimônio cultural não pode, assim, ser norteada somente por questões econômicas ou pertinentes ao turismo. O legado social e histórico representado pelos monumentos não pode ser esquecido (8). Se, por um lado, é certo que todo monumento é expressão de um uso político, por outro, não é aceitável que seus mármores e bronzes continuem a brandir verdades parciais como se fossem absolutas e universais. Em outras palavras, não podemos mais permitir que os monumentos representem apenas a ideologia dos dominantes, sendo necessário que passem a conciliar as duas histórias ─ a dos vencedores e a dos vencidos. O condenável não é o político em si, mas a apologia unilateral de quem (quase sempre) vence no ringue desse tipo de luta.

*Anita Mattes, advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, Cultore della materia na Università Bicocca em Milão, doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbonne, pesquisadora do Centre d’Étude et de Recherche en Droit de l’Immatériel (CERDI/Saclay) e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Ivan Ducatti - Prof. Adjunto de História Contemporânea - Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF); Pesquisador e Vice-Coordenador do Negrem (UNIRIO); Pós-doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Pós-doutor em História Contemporânea pelo Instituto de História Contemporânea (IHC), Universidade Nova de Lisboa (UNL); Visiting Scholar - Dipartamento di Filosofia e Beni Culturali della Università Ca' Foscari Venezia

(1) O Ministério da Cultura francês é, basicamente, dividido, conforme a região, em órgãos de atuação descentralizada, conforme as várias áreas de desempenho do Ministério: arquitetura e arqueologia, arquivos, cinema, criação artística, educação artística, museus, teatro e música e ação cultural. Assim, cada região tem seu respectivo Departamento Regional de Assuntos Culturais (DRAC). Por exemplo, em Paris, tem-se o DRAC Île-de-France. Mais informações no site do órgão: https://www.culture.gouv.fr/Regions/Drac-Ile-de-France.



(3) Dossiê do procedimento administrativo no DRAC île-de-France ê, p. 23.


(4) David Harvey faz uma análise da histórica de Basílica em Monument and Myth, Annals of the Association of American Geographers, vol. 69, n. 3, 1979, p. 362-381.


(6) DUCATTI, I. Para além de um armazém antropológico: patrimônio material e imaterial como fontes de estudos e de pesquisas históricas, a partir de museus históricos, in http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/assets/publicacao/anexo/historica37.pdf#page=49.


(7) LE GOFF, J. Memória, Eunaudi, 1982, cit. DUCATTI, I. “Aportes teórico-metodológicos para a seleção de edificações urbanas como fontes históricas primárias: uma proposta pedagógica para a pesquisa em história”, Rev. Departamento de História da UNEMAT, vol. 5, n.2, 2014, p. 239.


(8) Vide artigo de R. VIEIRA, “No meio do caminho tinha uma estatura, tinha uma estátua no meio do caminho”, publicado no site do IBDCult em 24 de junho de 2020.

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