*Imagem de OpenClipart-Vectors ; CC BY.
Quando o jurista compreende que o Direito é insuficiente para explicar o mundo ou para transformá-lo, torna-se possível uma aproximação fecunda de outras ciências, reconhecendo-as por seu próprio valor, com possibilidades para almejar uma sinergia que potencialize as rupturas necessárias das teorias dos direitos desconectadas da realidade social.
É nessa perspectiva que Bourdieu (1) afirma que “a ruptura é, com efeito, uma conversão do olhar e pode-se dizer do ensino da pesquisa em sociologia que ele deve em primeiro lugar `dar novos olhos´ como dizem por vezes os filósofos iniciáticos”. Entende o autor que se trata de produzir "um novo olhar", um olhar sociológico. “E isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental, uma mudança de toda a visão social de mundo”.
Ao compreender o Direito como uma ciência do ramo das sociais aplicadas, não se aceita que as mudanças sociais, quer estruturais, quer institucionais, possam se dar apenas pela promulgação de normas, uma vez que o fetichismo legal, tanto no âmbito internacional quanto nacional, não tem sido suficiente para tornar o mundo mais livre e igualitário.
Todavia, as normas podem favorecer diálogos – interpessoais e interinstitucionais - que fomentem eficazmente novas relações capazes de garantir e promover a diversidade na esfera local e global, isto é, a efetividade dos direitos pode se dar a partir do fortalecimento de vínculos afetivos intersubjetivos que animem as ações humanas para a concretização das disposições (promessas) normativas, com fundamento nos princípios da alteridade, da colaboração e da fraternidade.
A partir destas premissas, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por meio de sua Conferência Geral, estudos e eventos, tem enfatizado, particularmente no campo da cultura, suas dimensões de paz e transformação de mentalidade como elementos essenciais ao reconhecimento da diversidade cultural, sempre incentivando movimentos de cooperação cultural internacional e implementação de políticas culturais nacionais – promotoras de identidades culturais e de desenvolvimento - para ampliar as ações de proteção das culturas particulares.
Dessa forma, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada pela Conferência Geral da Unesco, em 2 de novembro de 2001 – e que este ano completará 20 anos de existência -, impulsionada por uma visão de desenvolvimento centrada na pessoa humana, que também busca evitar o imperialismo cultural (2), compreende a diversidade cultural como fator de desenvolvimento (artigo 3º), este, “entendido não apenas em termos de crescimento econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória”.
E mais, dispõe em seu artigo 2º, que “o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural”, ou seja, que a paz social implica no reconhecimento e respeito às identidades culturais plurais, fazendo-se assim essencial a efetivação de políticas públicas que favoreçam a inclusão e a participação de todos”.
Logo, o pluralismo cultural, como dimensão política da diversidade no campo da cultura, é elemento diferenciado para as ações de garantia e concretização dos direitos humanos (culturais) no âmbito do Estado, pois necessariamente implica o reconhecimento do outro em seu direito substancial à igualdade e à diferença, assim como a importância da realização de políticas culturais embasadas nas diversas manifestações identitárias para “reduzir as desigualdades”.
Aqui ainda vale ressaltar a importância que a Declaração de 2001 atribui ao fomento da criatividade das pessoas por meio da indústria cultural local e das parcerias entre a iniciativa privada e a sociedade civil para a viabilidade da produção cultural no âmbito nacional; além de contar com o intercâmbio e a cooperação internacional para superar os desequilíbrios do mercado mundial.
Nesse caso, compreende-se a dificuldade de efetivação de tal disposição por conta da mundialização da cultura do capital que, contrariamente às propostas da Unesco, infundem e difundem uma exacerbada competição entre Estados, e até internamente, orientação contrária aos documentos da Unesco que ressaltam o valor da cooperação cultural internacional e local.
Ainda é de se considerar nessa questão da parceria com a iniciativa privada que os valores conduzidos pela cultura do capital também se reproduzem localmente e tendem a valorizar e investir em produtos culturais que possam trazer a mais alta rentabilidade possível, de modo a descaracterizar a dimensão autenticamente cultural de tais produtos ou de não promover adequadamente aqueles que lutam por suas identidades particulares.
Para fazer frente aos desafios que a valorização da diversidade cultural e a dignidade de vida das pessoas necessitam é preciso realmente um novo olhar, uma autêntica metanoia (uma conversão mental e de sentimentos) da parte dos que atuam nos campos do direito, da cultura e das políticas públicas, pois sem este animus, as leis, os planos e as instituições continuarão cumprindo os seus papéis de amortecimento dos conflitos sociais, mas não de transformação de tais conflitos, de modo a “promover o bem de todos”.
Mas como fomentar mudanças tão radicais? Como transmiti-las por meio de educadores e formadores condicionados pelos paradigmas culturais e jurídicos vigentes? Mudanças culturais profundas não se dão no transcurso de uma geração, mas já é um começo.
Uma resposta plausível nos é dada por Cláudio Naranjo (3), quando afirma que para mudar o mundo é preciso mudar a educação; uma educação que promova autenticamente o autoconhecimento, a igual consideração pelo outro (humano ou não-humano) e a ética de uma existência animada pela colaboração.
*Marcus Pinto Aguiar, mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), advogado, doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
1 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz (português de Portugal). 12 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
2 Segundo Mattelart (2005, p.75): “Para a antropologia, o imperialismo cultural em sua forma mais clássica é uma ‘forma de etnocentrismo politicamente atuante’”. Conferir em MATTELART, Armand. Diversidade cultural e mundialização. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2005.
3 NARANJO, Cláudio. Mudar a Educação para mudar o mundo: o desafio do milênio. Brasília: Verbena Editora, 2015.
댓글