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Um museu pode ter fins lucrativos ?


Museu Brinquedim, em Pindoretama - Ceará - Foto de Ângela Madeiro

Desde 2009, o Brasil possui um Estatuto dos Museus, condensado na Lei nº 11.904, em cujo artigo inaugural lê-se: “consideram-se museus, para os efeitos desta Lei, as instituições sem fins lucrativos que conservam, investigam, comunicam, interpretam e expõem, para fins de preservação, estudo, pesquisa, educação, contemplação e turismo, conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico, técnico ou de qualquer outra natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento” [1].


A definição é fortemente inspirada na que é proposta, em nível planetário, pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), desde 1946, que sofre constantes alterações, tendo sido a mais recente adotada em Praga, no dia 24 de agosto de 2022, porém, relativamente a ela, possui algumas diferenças, que poderão ser percebidas após a leitura comparativa: “Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus promovem a diversidade e a sustentabilidade. Atuam e se comunicam de forma ética, profissional e com a participação das comunidades, oferecendo experiências variadas de educação, diversão, reflexão e compartilhamento de conhecimento” [2].


Da comparação, convém destacar, em função do que se objetiva com este artigo, uma semelhança e uma diferença. A similaridade é que ambas as definições exigem ausência de fim lucrativo para que uma dada instituição memorial possa ser considerada um museu. A discrepância é que a definição do ICOM prescreve o caráter permanente e a do Estatuto é omissa sobre isso.


Em termos analíticos, o próprio ICOM revela que “a adoção desta definição foi acompanhada de debates acalorados. As divergências giravam em torno da afirmação de que o museu não tem fins lucrativos. Mas o debate realmente quente girou em torno do fato de o museu estar ‘a serviço da sociedade’. A disputa ocorreu até mesmo em nível político, com representantes de museus de países ocidentais, [do chamado] mundo livre, acusando os representantes dos países do bloco socialista de induzirem práticas socialistas no museu” [3].


Para aprofundar o tema e de alguma forma participar do debate, é importante buscar outros entendimentos qualificados do que seja um museu, como é o caso do Código do Patrimônio Cultural da França, cujo Artigo L410-1 define que “um museu é qualquer coleção permanente composta por objetos cuja conservação e apresentação seja de interesse público e organizada para o conhecimento, educação e fruição do público” [4].

Vê-se que a legislação francesa nada se refere à finalidade econômica dos museus, pois o que para ela importa, de acordo com o Artigo L441-2, são suas “missões permanentes”: a) Conservar, restaurar, estudar e enriquecer as suas coleções; b) Tornar as suas coleções acessíveis ao maior público possível; c) Conceber e implementar ações educativas e de divulgação destinadas a garantir a igualdade de acesso à cultura para todos; d) Contribuir para o avanço do conhecimento e da investigação e para a sua divulgação” [5].


Ter ou não fim lucrativo, para o direito francês, é algo que importa, não para definir o que é um museu, mas para tratar de elementos periféricos como o tipo de designação (“Museu”, “Museu da França”, “Museu Nacional” etc.), as relações com o Estado (recebe ou não incentivos, por exemplo), a destinação de acervo, quando eventualmente decidir encerrar as atividades. O que importa mesmo para o legislador da terra de Victor Hugo é a atividade-fim.


No sentido da francesa, é a legislação da Espanha, cujo artigo 59, 3, da Lei do Patrimônio Histórico Espanhol (16/1985), estabelece que “Os museus são instituições permanentes que adquirem, preservam, pesquisam, comunicam e expõem para fins de estudo, educação e contemplação conjuntos e coleções de valor histórico, artístico, científico e técnico ou de qualquer outra natureza cultural” [6]. Mais uma vez, o enfoque é na permanência e nas finalidades, não na natureza econômica.


Independentemente das comparações, importa saber se a exigência de não ter fins lucrativos para caracterizar um museu é juridicamente aceitável para o ordenamento normativo brasileiro. Uma hipótese plausível é que a exigência seja inconstitucional, por pelo menos três motivos.


O primeiro é genérico e decorre de que a livre iniciativa é um dos fundamentos da República (Art. 1º, IV), e só a Constituição pode excluir a possibilidade de empreender, o que não se observa para os museus. O segundo é mais específico: tendo o museu uma função pedagógica, deve-se lembrar que, como regra, “o ensino é livre à iniciativa privada” (Art. 209). E o terceiro toca diretamente no campo cultural, no qual o papel do Estado é o de garantidor dos direitos culturais (Art. 215), inferindo-se daí, o protagonismo dos agentes socioeconômicos, que são livres para escolher a natureza dos seus empreendimentos culturais, dando-lhes ou não a finalidade lucrativa, conforme suas vontades, possibilidades e interesses [7].


Sendo o Estatuto dos Museus inaugurado por um artigo gerador de tantas dúvidas, incluindo possíveis inconstitucionalidades, bem como considerando que tal dispositivo tem a capacidade de reverberar sobre todo o documento, e até para além dele, com o desestímulo à livre iniciativa em matéria cultural, seria muito recomendável que as autoridades constituídas revisassem essa legislação, a partir de um amplo debate social, sobremodo porque, da consulta do processo legislativo que criou a Lei nº 11.904/20098, não se localizam debates nem mesmo justificativas sobre as regras relativas aos museus brasileiros.

Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)

Notas


[1] BRASIL, online: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11904.htm


[2] ICOM, online - onde podem ser vistas as traduções oficiais da instituição: https://icom.museum/en/resources/standards-guidelines/museum-definition/


[3] ICOM, online – ver o original em: https://icom.museum/wp-content/uploads/2020/12/2020_ICOM-Czech-Republic_224-years-of-defining-the-museum.pdf


[4]FRANÇA, online (ver o original em): https://www.legifrance.gouv.fr/codes/texte_lc/LEGITEXT000006074236/


[5] Idem.


[6] ESPANHA, online - ver o original em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1985-12534


[7] BRASIL, online: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

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