*Imagem: Luis Pinheiro ; CC BY.
Aveiro é uma cidade da região Centro de Portugal, conhecida pelo famoso doce chamado ovos moles e por ser lembrada como a "Veneza portuguesa". Os aveirenses não são muito chegados na alcunha turística que leva o lugar, mas qualquer um que se ponha a andar nas calçadas à beira dos canais da Ria de Aveiro – laguna gigantesca que abrange outras cidades próximas –, principalmente no centro histórico, será tentado a comparar os barcos com pinturas coloridas às gôndolas da cidade flutuante italiana.
Esses barcos portugueses, cujas proas e rés nos chamam bastante atenção com inscrições anedóticas (muitas vezes machistas e misóginas), históricas, ou até mesmo de cunho religioso, são os famosos moliceiros. Eles têm esse nome porque, durante o século XIX, ajudavam os agricultores no transporte do moliço, plantas aquáticas (algas de diferentes espécies) que, após a apanha, passavam por um processo que as transformavam em adubo para ser utilizado nas lavouras. Os moliceiros também eram utilizados na pesca marítima e fluvial.
Com o avanço da indústria química no século XX, outros tipos de adubos substituíram esse fertilizante natural e, com isso, houve um declínio do uso dessas embarcações, bem como o fechamento de vários estaleiros que chegaram a funcionar ao longo da Ria. O termo também designa quem tripula o barco. Hoje, o passeio nos moliceiros é obrigatório para quem visita Aveiro, assim como comer ovos moles, muito embora não tenha feito nenhuma das duas coisas, ainda que esteja numa relação temporária e transitória com a cidade há três anos.
Na semana passada, o barco moliceiro e a arte de sua carpintaria naval em Aveiro foram registrados no Inventário Nacional do Patrimônio Cultural Imaterial português [1]. Em Portugal, a nível nacional, o Inventário é o único mecanismo jurídico [2] que integra o regime de salvaguarda dos bens culturais imateriais [3].
A inscrição de um bem cultural imaterial no Inventário do PCI consiste na “desmaterialização” das manifestações do patrimônio inventariado com a utilização de formas gráficas, sonoras, material audiovisual, estudos, documentação fotográfica e bibliográfica, que permitam identificá-lo e divulgá-lo, deixando todo esse acervo disponível em uma base de dados de acesso público online, universal e gratuito.
Por expressa disposição legal, o registro do bem no Inventário Nacional do PCI deve ser participativo, resultando do consentimento informado e do envolvimento no processo dos detentores da manifestação cultural objeto da medida de salvaguarda. As duas principais obrigações das entidades públicas, tidas como deveres especiais, são promover os meios de inventariação para identificação, documentação, estudo e divulgação do bem salvaguardado, e fomentar o acesso à informação relativa ao patrimônio registrado. Além disso, as entidades públicas devem cooperar entre si na salvaguarda e assegurar a interoperabilidade das bases de dados sobre os bens culturais imateriais inventariados.
No caso do barco moliceiro e da arte da carpintaria naval, as inscrições foram feitas no registro de salvaguarda urgente, designando que a continuidade e a transmissibilidade futuras dos bens estão comprometidas e sujeitas a riscos significativos. Atualmente, segundo a Direção-Geral do Patrimônio Cultural de Portugal, o ofício relacionado ao saber-fazer dos barcos moliceiros é praticado regularmente por poucos mestres, em apenas dois concelhos de Aveiro, Estarreja e Murtosa. Na Ria de Aveiro, das quase três mil embarcações existentes até pouco depois da metade do século XX, existem em operação cerca de cinquenta, boa parte destinada aos passeios turísticos.
Segundo a legislação portuguesa, para que um bem lance sua candidatura à Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade obrigatoriamente tem de estar inscrito no Inventário Nacional do Patrimônio Cultural Imaterial. As comunidades da Região de Aveiro já haviam solicitado à Unesco o reconhecimento internacional desses bens, cumprindo agora o requisito interno que lhe faltava.
Em Portugal, em certa medida comparativa, o Inventário do PCI assume função similar ao Registro e ao Inventário Nacional de Referências (INRC) no Brasil, conjugando hibridamente as tarefas e os propósitos desses dois mecanismos no processo de salvaguarda. O Inventário do PCI português, nesse sentido, tem o papel de identificar o bem, assim como reconhecê-lo e valorizá-lo. Entretanto, é notório que a legislação portuguesa dá maior preponderância à produção de conhecimento e de materiais que possam divulgar a manifestação cultural inscrita.
Ainda assim, planos estratégicos podem encetar ações que permitam o desenvolvimento de iniciativas, em vários âmbitos, que colaborem com a continuidade e a transmissão do saber-fazer do bem imaterial. No caso dos moliceiros, foi proposta a articulação entre ensino formal e profissionalizante em torno do ofício da carpintaria naval, bem como propostas de licenciamento simplificado e excepcional dos barcos que facilitem sua comercialização e produção.
No Brasil, no plano nacional, esse processo de identificação que ocorre no Inventário do PCI português é, em regra, uma etapa anterior ao reconhecimento que advém com a titulação proporcionada pelo Registro. A metodologia adotada nacionalmente é a do INRC, que consiste em análises, acompanhamentos, avaliações, produtos, mobilizações e ações referentes ao bem cultural imaterial.
O INRC é, portanto, um instrumento complementar prévio ao Registro, que pode subsidiar pedidos de inscrição de bens culturais imateriais em um dos livros mencionados no Decreto nº 3.551/2000. Já o Registro se circunscreveria aos efeitos de reconhecimento, visibilidade e valorização do bem imaterial inscrito e titulado como patrimônio cultural brasileiro. No Brasil, o fomento e o apoio aos bens registrados ficariam mais a cargo dos Planos e Ações de Salvaguarda, que se referem à promoção das condições materiais e sociais que assegurem a transmissibilidade intergeracional do bem imaterial e sua reprodução.
Apesar da breve comparação dos instrumentos de salvaguarda do PCI dos dois países, espero, talvez quem sabe um dia, após o estímulo da inscrição no Inventário português, me render às vestes de turista e embarcar num moliceiro nos canais da Ria de Aveiro, comendo uma tripa, já que os ovos moles não me atraem tanto assim.
Rodrigo Vieira, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa, Coordenador do Curso de Direito da mesma instituição e membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult
Notas
[1] Disponível em: https://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/publicos/notasimprensa/barcomoliceironi.pdf.
[2] Ver Lei de Bases do Patrimônio Cultural português, Lei nº 107, de 08 de setembro de 2001
[3] Decreto-Lei nº 139, de 15 de junho de 2009, com alterações do Decreto-Lei nº 149, de 04 de agosto de 2015
Comentarios