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Quando o patrimônio cultural é apenas retórica


Ipê rosa, Cerrado, Goiânia-GO. Foto do autor, 2019


A eloquência com que se patrimonializa um bem cultural, por vezes, aponta apenas para seu uso político-partidário, com a omissão de seu ideal objetivo: a proteção do patrimônio e/ou a emancipação dos grupos detentores do bem. Observemos.


São inscritos como Patrimônio da Humanidade, pela Unesco (da sigla em inglês, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal (MT/MS); as Reservas do Cerrado - Parques Nacionais da Chapada dos Veadeiros e das Emas (GO); e o Complexo de Conservação da Amazônia Central (AM).


Sobre o primeiro, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), assinala que "inscrito pela Unesco na Lista do Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera em 2000, o Complexo de Áreas Protegidas do Pantanal, que compreende o Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense as Reservas Particulares de Proteção Natural de Acurizal, Penha e Dorochê, constitui o maior sistema inundado contínuo de água doce do mundo e um dos ecossistemas mais ricos em vida silvestre. O Pantanal recebeu esse reconhecimento devido à paisagem que, formada por ecossistemas particulares e tipicamente regionais, constitui uma das mais exuberantes e diversificadas reservas naturais do planeta" (1).


Quanto ao segundo, "os parques nacionais da Chapada dos Veadeiros e das Emas foram declarados Patrimônio Mundial Natural pela Unesco, em 2001. As duas regiões são áreas protegidas do cerrado brasileiro, um dos ecossistemas tropicais mais antigos e diversificado do mundo. Por milênios, esses locais têm servido de refúgio para várias espécies durante os períodos de mudanças climáticas e será vital para a manutenção da biodiversidade da região do cerrado durante futuras flutuações climáticas" (2).


Por fim, a Amazônia é área inscrita na Lista de Patrimônio Mundial pela Unesco que "possui mais de seis milhões de hectares e é uma das regiões mais ricas do planeta em biodiversidade, com importantes exemplos de ecossistemas de várzea, florestas de igapó, lagos e canais – os quais formam um mosaico aquático em constante mudança, onde vive a maior variedade de peixe elétrico do mundo. O Complexo de Conservação da Amazônia Central é formado pelo Parque Nacional do Jaú (inscrito em 2000), as reservas Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã, e o Parque Nacional Anavilhanas (inscrito em 2003), todos no Estado do Amazonas" (3).


Contudo, me pergunto: por que estão sendo destruídos? Quem poderia protegê-los? De que serve o reconhecimento como patrimônios não só brasileiros, como da Humanidade?


Uma resposta a uma das perguntas seria: o governo federal. Todavia, esse é um dos cúmplices, autores e artífices das criminosas destruições de nossos ricos biomas. Tornou-se notória a frase do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles que disse, em reunião ministerial, que o governo federal deveria aproveitar o foco dado pela mídia ao Covid para "passar a boiada" (4). Isso significa relaxamento das leis ambientais, desregulamentação, ou, em português direto, torná-las frouxas e ineficientes.


O ministro já vinha agindo nesse sentido. A Instrução Normativa 13/2020, publicada antes mesmo da sacrílega reunião do dia 22 de abril, permite a pulverização de fungicidas agrícolas e de óleo mineral na cultura da banana, com diminuição da distância entre as áreas de povoamento e as que serão pulverizadas por agrotóxico. Assim, comunidades rurais, quilombolas, indígenas, tornam-se mais suscetíveis a serem atingidas. Outro exemplo é a tentativa de regulamentação de terras ilegalmente ocupadas, através da Medida Provisória 910, a "MP da Grilagem".


A grilagem, a invasão de terra, o agronegócio, são causas diretas de perseguição à agricultura familiar, a expulsão e o genocídio indígenas, a violência contra quilombolas e, claramente, a destruição dos biomas acima citados.


Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o Pantanal enfrenta a maior série de queimadas dos últimos 20 anos (5). Até hoje, já foram destruídos 15% de toda a extensão do bioma no Brasil. Espécies ameaças de extinção, como as onças-pintadas, suçuaranas, araras azuis, dentre outras, sofrem ainda mais com esses crimes ambientais.


O mesmo se passa com a Floresta Amazônica e o Cerrado brasileiros. Segundo o Greenpeace, dos focos de calor registrados em julho desse ano, "539 foram dentro de Terras Indígenas, um aumento de 76,72% em relação ao ano passado (6), quando foram mapeados 305 focos. Além disso, 1.018 atingiram Unidades de Conservação, um aumento de 49,92% em relação ao mesmo período do ano passado". Para o Brasil Escola, "a pecuária extensiva e a agricultura mecanizada de soja, milho e algodão são as principais causas da destruição de boa parte desse tipo de formação vegetal" (7). Cumpre lembrar que o Cerrado é responsável pelo abastecimento de várias redes hídricas de todo o Brasil, e a Amazônia é fonte de umidade para alimentar de chuvas outras partes do país.


Assim, penso que as ações de patrimonialização não são simples panaceias. Devem ser meios de promoção desses biomas, de instrumentalização de políticas públicas de proteção, de aplicação de penalidades eficazes e efetivas. Infelizmente, hoje no Brasil, não é a isso que se assiste. Só há grilos e gafanhotos. Já não se vê mais esperança.


Yussef D. S. Campos

Professor da Faculdade de História e dos Programas de Pós-Graduação em História e Professor de História, da UFG. Autor de "Palanque e Patíbulo: o patrimônio cultural na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)". 2ª ed. Goiânia: Palavrear, 2019.


(1) Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/40. Acesso em 17 de setembro de 2020

(2)Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/53. Acesso em 17 de setembro de 2020.

(3)Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/41. Acesso em 17 de setembro de 2020.

(4)Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/salles-diz-em-reuniao-que-governo-deve-aproveitar-pandemia-e-ir-passando-a-boiada-em-medidas-regulatorias/. Acesso em 17 de setembro de 2020.

(5)Disponível em: http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/aq1km/. Acesso em 17 de setembro de 2020.

(6)Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/08/01/queimadas-na-amazonia-tem-alta-de-28-no-mes-de-julho-informa-inpe.htm. Acesso em 17 de setembro de 2020.

(7) Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/brasil/a-acao-fogo-no-cerrado.htm. Acesso em 17 de setembro de 2020.

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