Guerra é paz
Liberdade é escravidão
Ignorância é força.
George Orwell (1)
*Imagem: Wokandapix; CC BY
George Orwell no livro 1984, publicado em 1949, e que trata sobre as liberdades de expressões comprometidas, o governo totalitário, o grande irmão, é obra de ficção que sob o olhar do século XXI não deixa de ter um caráter profético pois aborda o imaginário de uma sociedade repressiva, onde os crimes mais graves são cometidos através do pensamento, sendo crime, inclusive, relembrar o passado, que deveria, por regra, ser esquecido.
No mundo ficcional de Orwell, as pessoas que possuíssem memória eram obrigadas a se submeterem a uma série de torturas e procedimentos para fazê-las esquecer não apenas o que havia acontecido, mas, sobretudo, confundir as suas memórias e seus propósitos, ao ponto de compreenderem que dois mais dois são cinco, ao invés de quatro.
É impossível ler esse trecho do livro e não o contemporizar com as falácias que se propagam pelas redes sociais, fazendo a terra perder a sua forma arredondada para se tornar plana ou o conhecimento científico ser desacreditado não porque foi submetido exaustivamente à crítica e não resistiu ao princípio da falseabilidade de Popper; mas porque os “cientistas” de plantão propagam que aquele conhecimento não é válido. E quanto mais absurdo e surreal for o pseudofundamento, mais adeptos e defensores essas teorias falaciosas adquirem.
E assim como no mundo ficcional de George Orwell, guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força, no Brasil atual, de forma totalmente contraditória, vacina é morte e arma é vida. Contudo, no mundo atual (real ou virtual), as pessoas não estão sendo levadas para o Ministério da Verdade – Miniver para se submeterem à hipnose e permanecerem apenas com a memória desejada pelos seus controladores; estão de certa forma fazendo isso a si próprias, em suas casas, por meio das redes sociais e do algoritmo que controla o que se acessa na internet.
O documentário da Netflix “O dilema das redes sociais” é de certa forma esclarecedor sobre o controle que as redes exercem sobre os conteúdos visualizados. O objetivo do algoritmo é prender a atenção dos usuários para que eles permaneçam o máximo de tempo conectados à internet. E, para tanto, a lógica adotada é apresentar conteúdos e informações que os usuários já tenham demonstrado interesse. Assim, cada indivíduo tem um conteúdo moldado aos seus interesses prévios e voltado para confirmar suas crenças e posições políticas, mas de forma acrítica e com o único propósito de prender a atenção.
O receio de Winston Smith, protagonista do livro 1984, de não ter outra opção que não aceitar a verdade fornecida pelos controladores quando a sua memória falha e os registros existentes são falsificados, parece ser reproduzido pelo algoritmo da internet, que para muitos é a única fonte de conhecimento, e, por isso, torna-se para essas pessoas o depositário e o controlador da história e da memória, que são instrumentos e objetivos de poder.
A memória para Aristóteles (2) não é nem sensação nem julgamento, é um estado de qualidade, de afeto, quando o tempo já passou. Numa perspectiva coletiva, a memória é essencial para a identidade dos grupamentos humanos. Apenas os seres humanos são capazes de possuí-la, porque são animais culturais. O controle absoluto da memória como na obra 1984 de Orwell está no campo ficcional. Contudo, as fake news e os efeitos socialmente deletérios do mau uso da internet continuam fazendo vítimas fatais especialmente na pandemia.
É preciso mudar esse estado de coisas, pois a disseminação de notícias falsas chegou num nível que ameaça a própria democracia e as próprias relações humanas e sociais. Atualmente, o enfrentamento do questionamento de Norberto Bobbio (3) de saber “quem controla os controladores” nunca se fez tão necessário.
Allan Carlos Moreira Magalhães - Doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo”.
Cheyenne Alencar - Bacharel em Direito, Especialista em Direito Penal e Criminologia, Produtora Cultural, Cineasta. Membro do GEPDC - UNIFOR
(1) ORWEEL, George. 1984. Traduzido por Karla Lima. – Jandira, SP: Principis, 2021.
(2)ARISTÓTELES. Da memória e da reminiscência. On the soul- parva naturalia- on breath. Harvard University Press, Cambridge, Mass. 1986
(3) BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 13 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
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