O reconhecimento da importância dos direitos culturais para a promoção de uma vida digna para todos tem sido difundido nas instâncias nacionais e transnacionais de forma intensa, apesar de nunca suficiente para a plena fruição de tais direitos por cada uma das pessoas, como só acontece com as demais espécies de direitos humanos e fundamentais, haja vista as consequências nefastas percebidas diariamente na vida de milhões de seres humanos.
No plano normativo convencional, os tratados internacionais de direitos humanos têm sido cada vez mais incorporados ao sistema jurídico nacional, como instrumentos de fortalecimento interno de tais direitos fundamentais para a garantia de uma existência humana digna.
Nesse campo, apenas para citar dois tratados internacionais paradigmáticos enquanto fundamentos normativos do processo de universalização dos direitos humanos (e culturais), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotado pela ONU, em 1948, expressamente dispõe em seu artigo 27.1 que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios”; no caso, há uma reprodução praticamente idêntica dos mesmos direitos no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), em seu artigo 15.1.
No contexto interno, há previsões esparsas no texto constitucional que remetem à diversas manifestações dos direitos culturais, tais como: liberdade de expressão artística (art. 5º, IX); direito de autor (art. 5º, XXVII), entre outros. No entanto, a Constituição Federal reservou um capítulo em especial – terceiro – para se referir expressamente aos direitos culturais, em sua Seção II, artigos 215, 216 e 216-A.
Nesse contexto, mais uma vez, reafirmou-se a pretensão de universalidade dos direitos humanos (“para todos”), no caso, especificamente no artigo 215, os direitos culturais; e o dever do Estado de garanti-los em sua integralidade e interdependência, nos termos que seguem: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.
Quando se considera o direito à fruição dos bens culturais pelas pessoas com deficiência é importante lembrar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) trouxe importantes ganhos no campo da acessibilidade cultural e dos direitos culturais para este grupamento específico.
Assim, o Estatuto dispõe não apenas acerca do direito à cultura da pessoa com deficiência (art. 42), garantindo-lhe também a fruição de “bens culturais em formato acessível”; mas também reafirma o dever do Estado de “promover a participação da pessoa com deficiência em atividades artísticas, intelectuais, culturais, esportivas e recreativas, com vistas ao seu protagonismo” (art.43).
O Estatuto da Pessoa com Deficiência promoveu ainda importante alteração na Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, mais conhecida como Lei Rouanet, que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), ao acrescentar o §3º no artigo 2º, concedendo incentivos somente à “projetos culturais que forem disponibilizados, sempre que tecnicamente possível, também em formato acessível à pessoa com deficiência” .
Todavia, apesar dos esforços legais, observa-se a necessidade de novas estratégias voltadas à acessibilidade cultural das pessoas com deficiência, considerando os resultados ínfimos alcançados, conforme estudo de análise de projetos atentos à acessibilidade. (1)
Lembra-se ainda, em matéria de tratados internacionais de direitos humanos, que dos quatro que alcançaram até o momento o status de equivalente à Emenda Constitucional, na forma do §3º, art. 5º, da Constituição Federal, três deles tratam de matéria de direitos das pessoas com deficiência. (2)
Neste sentido, diante de conflitos de leis internas que veiculam matéria de direitos culturais ou outros direitos relativos às pessoas com deficiência que confrontem com os referidos tratados, as normas do sistema jurídico nacional devem ter afastadas sua aplicação por inconvencionalidade, ou, como refere o Supremo Tribunal Federal, por inconstitucionalidade.
E mais, no âmbito de aplicação do controle de convencionalidade, conforme doutrina desenvolvida na jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, até mesmo os atos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário que atentem contra a mais ampla aplicação dos direitos e liberdades previstos naqueles tratados (Convenção da ONU sobre o Direito da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Adicional, e contra o Tratado de Marraqueche, para ficar nos que versam sobre matéria de direitos culturais), devem ser considerados como inválidos juridicamente.
Lamenta-se que apesar de todo este aparato legal e constitucional, e do suporte convencional complementar internacional que se tem no Brasil para garantir direitos humanos e fundamentais, os direitos de acesso à vida cultural pelas pessoas com deficiência ainda sofram violações ao seu pleno exercício, permitindo que estas pessoas continuem excluídas, pela não aplicação das referidas normas e pela extrema ineficácia de políticas culturais neste campo.
Como sempre, restam aos movimentos sociais que lutam nestas searas dos direitos culturais e dos direitos das pessoas com deficiência buscarem a conscientização e a adesão mais ampla da sociedade para fortalecer a sua participação política na esfera pública e, assim, influenciar nas mudanças necessárias para garantir a dignidade existencial para todos.
*Marcus Pinto Aguiar, mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), advogado, doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
1. Conferir em Silva e Diniz (2019)
2. Os tratados são os seguintes: Convenção da ONU sobre o Direito das Pessoa com Deficiência, Protocolo adicional à Convenção da ONU sobre o Direito das Pessoa com Deficiência, Tratado de Marraqueche (para facilitar o acesso a obras publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para ter acesso ao texto impresso); e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Referências
SILVA, Diego Martins Aragão; DINIZ, Cládice Nóbile. Contribuições da Lei Rouanet ao acesso das pessoas com deficiência física a serviços culturais. Disponível em: <http://repositorio.febab.org.br/items/show/3131>. Acesso em 13.mai.2022.
Comentários