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Patrimônios difíceis: O Memorial da Pandemia


Cais do Valongo, Rio de Janeiro-RJ. Patrimônio Cultural da Humanidade (2017)


Ao nível do senso-comum, quando se fala em Patrimônio Histórico, a primeira imagem que nos vem à mente é aquela identificada com as cidades coloniais, os monumentos, os edifícios antigos, as obras de arte e os sítios arqueológicos. Ligada ao fortalecimento do estado-nação, a ideia de patrimônio histórico esteve atrelada, durante muito tempo, ao paradigma da identidade nacional. Tratava-se de escolher os bens culturais, notadamente materiais, que representassem os valores de uma dada sociedade, por seu estilo arquitetônico, de caráter original e excepcional, representativo do belo e do positivo.


Na segunda metade do século passado, em meio às reivindicações de outros grupos sociais, ampliou-se a noção de patrimônio histórico para além da “pedra-e-cal”, passando a incorporar, também, os bens imateriais ou intangíveis, representativos dos modos de fazer e viver de diferentes segmentos da sociedade.


Os conflitos mundiais, o genocídio de populações e, principalmente, o holocausto, representado pelo extermínio de mais de cinco milhões de judeus, levou a uma outra mudança no próprio conceito de Patrimônio Cultural. A Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) passou a adotar a expressão “patrimônios sombrios, marginais ou da dor” ao eleger determinados sítios históricos com o objetivo de denunciar as violações aos direitos humanos e os genocídios praticados na História contra as minorias étnicas e determinados grupos sociais.


Segundo a historiadora Cristina Meneguello, “Os patrimônios difíceis remetem a locais de intricada fruição e estão associados ao sofrimento, à exceção, ao encarceramento, à segregação, à punição e à morte. Tais patrimônios podem reunir a função de memorial ou de local de peregrinação com a finalidade de rememoração coletiva e do reconhecimento de direitos e de reparação”.1

Entre os exemplos de sítios históricos que se enquadram nessa nova tipologia de “patrimônios difíceis”, reconhecidos como Patrimônio da Humanidade pela Uneco, desde a década de 1970, estão a Ilha de Goré, no Senegal, considerado o maior centro de tráfico de negros escravizados; os campos de concentração de Auschwist-Birkenau, na Polônia, em alusão a um dos principais lugares de memória do Holocausto; o Memorial da Paz em Hiroshima, no Japão, que relembra o lançamento da bomba atômica nessa cidade japonesa e a Robben Island, local onde o líder sul-africano Nelson Mandella permaneceu preso por sua luta contra o apartheid. Esses lugares de memória traumática também são conhecidos como “sítios de consciência” (sites of conscience) e entrelaçam uma nova concepção de patrimônio cultural com a perspectiva da defesa dos direitos humanos.

Em 2017, no Brasil, tivemos também o reconhecimento do primeiro “patrimônio difícil” por parte da Unesco. Trata-se do Cais do Valongo, na cidade do Rio de Janeiro, declarado Patrimônio Cultural da Humanidade. Esse sítio histórico foi um dos principais portos de desembarque dos negros escravizados que chegavam em território brasileiro provenientes da África. Como sabemos, a escravidão perdurou durante mais de três séculos no país e deixou marcas indeléveis na sociedade brasileira, cuja principal herança nefasta é a persistência de um racismo estrutural.


Outros exemplos de patrimônios difíceis ou sombrios estão relacionados aos regimes de exceção promovidos pelo próprio estado. É o caso das ditaduras militares que se instalaram na América Latina, em especial no Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil. Na Argentina, no Chile e no Uruguai, como forma de denunciar a violação aos direitos humanos, que provocou o desaparecimento e a morte de perseguidos por esses regimes ditatoriais, temos presenciado a constituição de memoriais e de museus da memória e dos direitos humanos.

No Brasil, podemos citar alguns exemplos de patrimonialização da dor, cuja principal ação foi promover o tombamento de alguns edifícios que serviram como prisões e centros de tortura aos presos politicos. Um deles é o Memorial da Resistência, na cidade de São Paulo, antigo prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP) e que se transformou, desde 2008, em um espaço musealizado e que promove ações educativas, visando levar ao conhecimento da população esse passado sombrio de nossa história.

Com os lemas Lembrar para não esquecer!e Para que nunca mais aconteça!, esse espaço museológico realiza,além de mostras e exposições, cursos, palestras e oficinas pedagógicas direcionadas sobretudo aos professores da educação básica,com o objetivo de que os mesmos levem para a sala de aula o conhecimento desse passado recente de nossa história, marcado por um regime de exceção.

Eis que surge, mais recentemente, nesse contexto dos “patrimônios difíceis ou sombrios”, a proposta de criação de um Memorial da Pandemia da Covid-19 por parte do Senado Federal. Até a presente data, mais de 600 mil brasileiros morreram vítimas do novo coronavírus. Por conta do negacionismo em relação à própria existência da pandemia e da negligência do governo federal na compra de vacinas e a insistência em um “tratamento precoce” sem nenhuma comprovação científica, tem-se a certeza, evidenciada pelo relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19, de que muitas vidas poderiam ter sido poupadas.

Em aprovação unânime, através da Resolução nº 26, de 2021 2, o Senado decidiu construir um monumento que registrasse a crise sanitária provocada pela pandemia da covid-19 no Brasil. Trata-se do Memorial em Homenagem às Vítimas da Covid-19. Segundo dispõe o parágrafo único do art. 1º dessa Resolução, “o Memorial será identificado por placa que indique ao menos o seu nome e deverá ser instalado na parte externa das dependências do Senado Federal, de modo a ser facilmente visto pelos cidadãos, representando a dor pela perda das vítimas nas 27 (vinte e sete) unidades da Federação”. Segundo a justificação contida no projeto de resolução inicial, “o monumento tem como compromisso manter viva a memória dessa que é a maior tragédia humanitária da história do Brasil e que deixa uma cicatriz na história do País”

Além da proposta de criação desse Memorial, vale destacar várias iniciativas de memória, oriundas de órgãos governamentais, a exemplo do Arquivo Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, com o projeto "Testemunhos do Isolamento” e de movimentos da sociedade civil, como o portal na internet “Inumeráveis”, memorial virtual dedicado à história das vítimas da Covid-19. Até mesmo instituições museológicas estão realizando exposições virtuais, a exemplo do Museu da Pessoa, com seu “Diários da Pandemia”. Todos eles estão empenhados em deixar o registro à posteridade desse passado sensível da história da humanidade, que já ceifou a vida de mais de cinco milhões de pessoas em todo o mundo.

Para além de se constituir um direito ao passado, a criação desses novos lugares de memória, na célebre acepção cunhada pelo historiador francês Pierre Nora, nos traz uma dimensão cívica e pedagógica. O Memorial da Pandemia não pretende ser um monumento celebrativo. Sua construção na capital do país pretende representar a lembrança dos que se foram, a tristeza das famílias enlutadas pela dor e o registro de uma memória traumática de nossa história. E, principalmente, a advertência a todos os brasileiros para que nunca mais se repitam erros e negligências por parte do governo federal em relação ao mais fundamental de todos os direitos - o direito à vida.


*Ricardo Oriá, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Consultor Legislativo da área de educação, cultura e desporto da Câmara dos Deputados. Autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira (E. Annablume, 2011)


1.MENEGUELLO, Cristina. “Patrimônios Difíceis (Sombrios)” In: CARVALHO, Aline e MENEGUELLO, Cristina (org.). Dicionário Temático de Patrimônio: debates contemporâneos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2020, p. 245.


2. RESOLUÇÃO Nº 26, DE 2021, Cria o Memorial em Homenagem às Vítimas da Covid-19 no Brasil. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/35034108/publicacao/35036511

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