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Os direitos culturais no desenvolvimento integral das sociedades



Desde que os gregos escreveram no portal do Templo de Delfos a recomendação “conhece-te a ti mesmo” (1), identificaram a substância do que hoje conhecemos por “direitos culturais”. Se os direitos culturais têm um objetivo maior, portanto, é o de nos levar ao autoconhecimento, não apenas numa esfera individual, mas sobremodo em dimensão holística, abrangendo, com destaque, as dimensões social, política, econômica e ambiental, dada a natureza intersubjetiva de todo direito, neste caso, duplamente reforçada pela mesma intersubjetividade que a cultura também possui.


Não é sem razão que em termos materiais (ou temáticos) os direitos culturais, como quaisquer disciplinas do universo normativo, tratam de relações jurídicas, neste caso, sobre as artes, as memórias coletivas e os fluxos de saberes, contemplando liberdades (permissões), proibições e obrigações, todas feitas no sentido de favorecer valores que cultivam o melhor que pode haver nas e para as relações estabelecidas pelo ser humano, como a dignidade, o desenvolvimento e a paz.


Os direitos culturais, mais que quaisquer outros estão vinculados à tridimensionalidade temporal, pois devem ligar permanentemente passado, presente e futuro. O primeiro como fonte de experiência, o segundo como plano de vivência e o terceiro como destinatário de responsabilidade, solidariedade e afeto intergeracionais.


Vê-se, assim, que os direitos culturais são os direitos das relações humanas que envolvem subjetividades potencializadas, conceito mais bem compreendido se recorremos a síntese filosófica extraída da obra shakespeariana de que somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos (2), indicativa, primeiramente, das nossas virtudes, mas que não esconde o anverso desta moeda, aquela face não tão agradável, que por isso é merecedora da advertência, feita pelo dramaturgo romano, Terêncio, de que “nada do que é humano me é estranho” (3).


Essa alta subjetividade que acompanha os direitos culturais desde as incontáveis definições que para eles são ofertadas (4), demanda certo pragmatismo das políticas culturais elaboradas para a sua efetivação, sob penas de não serem verdadeiramente políticas, mas meras reiterações ensaísticas, próprias dos debates artísticos e filosóficos sobre o tema, importantes para entendê-los, mas insuficiente para operacionalizá-los.


Pragmaticamente, por exemplo, devemos considerar o direito à educação não um direito próximo dos direitos culturais, mas um deles (5), que se rege por principiologia comum, que compartilha os objetivos e que universaliza conteúdos (6) e valores pertencentes à esfera dos fluxos dos saberes, fazeres e viveres. Isso é o que justifica a obrigação constitucional frequente para que os governos apliquem considerável fatia dos seus orçamentos (7) neste direito que, uma vez percebido de forma isolada, ou seja, sem relação com os demais direitos, sobremodo os outros direitos culturais, deixa de merecer o qualificativo de “educação” e passa a ser somente instrução, adestramento, programação ou mera inserção de dados como são feitas nos autômatos da cibernética.


Quanto aos âmbitos da memória coletiva, tem que ser levada a sério a ideia de participação da comunidade, em todos os momentos dos processos de inventário e salvaguarda dos bens componentes do patrimônio cultural, pois se o Estado pode ser um bom guardião para coisas estáticas que podem constar num arquivo, a exemplo dos documentos históricos, a melhor competência para o resguardo das coisas dinâmicas é indubitavelmente da sociedade, desde que siga a mesma métrica de atualização das coisas.


Para cumprir este papel, a dita sociedade precisa conhecer, com espírito de honestidade, suas origens, sua trajetória e o seu atual estágio, isso porque só se ama aquilo que se conhece (8), como diz o complemento cristão para o indicativo helênico sobre o autoconhecimento.


Assim, é imperioso que se invista em educação patrimonial para, além de ensinar o que se sabe, aprender com a sociedade o que para ela é importante; e que a sociedade, além de externar seus interesses, assuma as suas responsabilidades em face das minorias, dos que vieram antes e dos que virão depois.


Sobre as artes, é preciso conhecer a diversidade de compreensão que este admirável e enigmático universo inspira, bem como ter consciência dos distintos momentos e formas pelos quais elas se comunicam. É importante entender que o papel da arte, mais que educar, é inspirar, projetar o ser humano para além dele próprio, permitir que ele estabeleça comunicações que ultrapassem o racional, bem como entender que a dita comunicação pode ser momentânea à produção artística ou retardar-se por anos ou até por séculos.


Vê-se, assim, que os direitos culturais jamais podem ser vistos isoladamente, tal qual observado desde 1948, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos os apresentou em conjunto com os direitos econômicos e sociais, dois campos das relações jurídicas que tratam de carências orgânicas, demandadas para o aqui e o agora, como a alimentação, o vestir e o morar.


Neste ponto cabe a denúncia de que efetivar, ainda que sob a ideia do mínimo existencial, somente os direitos sociais e econômicos, postergando os direitos culturais para incertos dias melhores, é algo muito mais grave que praticar a ilegalidade de interpretar um direito em desfavor de outro, é ato de pouca ou nenhuma inteligência pois, como visto, os direitos culturais favorecem o autoconhecimento individual e social, atitude indispensável à otimização e partilha de recursos e, por conseguinte, ao melhor desenvolvimento integral da sociedade que assim procede.

Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).

Este texto serviu de base para palestra proferida pelo signatário no evento “Derecho de la Cultura, Democracia y Diversidad Cultural”, organizado pelo escritório da UNESCO no México, como atividade preparatória à II Mundiacult – Conferência sobre Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável, a ocorrer no mencionado país, de 28 a 30 de setembro de 2022. Link para acesso à gravação do referido evento preparatório: https://tinyurl.com/5n8nuv7y

(1) BRANDÃO. Juanito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico. São Paulo: Editora Vozes, 2014, p. 164-164.


(2) Shakespeare, William. A Tempestade. In: Box Grandes Obras de Shakespeare (27 peças: Hamlet, Rei Lear, Romeu e Julieta, Otelo, O Mercador de Veneza, Sonho de uma Noite de Verão...) (p. 1039). Mimética. Edição do Kindle.


(3) GASNESS, John. Mestres do Teatro I. São Paulo Perspectiva, 2007, p. 114 – 118.


(4) CUCHE, Denys. La noction de culture dans les sciences socieles. Paris: La Découverte.

(5) MEYER-BISCH, Patrice; BEDEAUX, Mylène. Afirmar os Direitos Culturais. São Paulo: Iluminuras, 2014, p. 85.


(6) SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 50.


(7) Constituição Brasileira de 1988: “Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.


(8) Santo Agostinho; Agostinho de Hipona. Confissões (p. 223). Montecristo Editora. Edição do Kindle: “Não dizemos ter achado uma coisa que se perdera, se a não conhecemos, nem a podemos conhecer, se dela nós não lembramos. Esse objeto desaparecera para os olhos que a memória conservara”.

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