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O reconhecimento dos direitos culturais indígenas enquanto garantia do direito à vida

Atualizado: 7 de jun. de 2022


(Crédito: Image by CiganaVida from Pixabay )

No plano constitucional brasileiro, observa-se que há expressamente um dever estatal de garantir que todos possam usufruir do pleno exercício dos direitos culturais, de modo particular, conforme o parágrafo primeiro do artigo 215, da Constituição Federal, os “grupos participantes do processo civilizatório nacional”, referindo-se, especialmente, aos indígenas e afro-brasileiros. Ainda quanto aos indígenas, a Carta Magna, no artigo 231, reconhece sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.


No Brasil, estima-se que coexistam cerca de 1.108.970 1 residentes em localidades indígenas, segundo dados do IBGE 2 combinados com o Censo de 2010, levantamento feito para o combate à Covid-19 em comunidades tradicionais. Entre indígenas, encontram-se 305 etnias e 274 línguas indígenas.


Quando da formação do Estado-Nação, observa-se um movimento de uniformização e centralização do poder para garantir a gestão do território no qual o governo exerce sua soberania sobre um grupamento humano, denominado povo. Daí o surgimento das codificações legais na tentativa de suplantar as manifestações de direito – inclusive, consuetudinárias, próprias de espaços independentes e autônomos; além da busca pela integração nacional 3 da diversidade cultural das comunidades, agora tratadas homogeneamente. ´


Assim, a unificação do Estado e da nação em um só ente é também uma forma de simbolizar a pretensa identidade cultural como uma expressão determinada de um povo que, mesmo com o reconhecimento de variadas expressões culturais em seu meio, é levado a experimentar o sentimento “nacionalista” em defesa do território e de seus valores que o diferencia dos demais; podendo, inclusive, essas diferenças se exacerbarem ao ponto de fortalecerem a identidade local com o combate ao diferente, que passa a ser inimigo.


Nesse sentido, até internamente, a intolerância do que escapa da homogeneidade, o estranhamento ao diferente, dentro do mesmo povo, pode levar ao reagrupamento de alguns para combater valores de grupos minoritários.


Daí a importância de um Estado que compreenda as suas diferenças e utilize os seus espaços e “poder” para que todos possam se conscientizar e reconhecer a sua diversidade, com o consequente fortalecimento da unidade por meio do respeito, igual consideração e responsabilidade pelo outro, ou seja, um Estado que utiliza o seu aparato econômico-financeiro – além do político e jurídico - para promover igualmente todas as expressões culturais, mesmo as que não estão presentes na cotidianidade da maioria; ações capazes de gerar paz e harmonia social, que nascem da justiça distributiva dos meios materiais e imateriais necessários e adequados à realização plena da vida de cada um e de todos.

Dessa forma, compreende-se que o fomento do reconhecimento recíproco da diversidade de expressões culturais dentro do território estatal é de suma relevância para a boa convivência social e o fortalecimento das múltiplas identidades culturais, como bem compreende Giovanni Sartori 4 ao afirmar que “o intento primário do pluralismo é assegurar a paz intercultural, não fomentar uma hostilidade entre culturas”.


No entanto, mesmo com o reconhecimento da coexistência da pluralidade de identidades, tanto no território estatal como em grupos menores, e de que o intercâmbio na diversidade é fonte de criatividade e desenvolvimento individual e coletivo, ainda estão presentes o isolacionismo e o etnocentrismo na atualidade, como expressões de uma pecha colonialista.

Assim também, para resolver as causas da violência urbana e rural, expressões da falta de paz social (e individual), pode-se pensar no vetor dos conflitos culturais como força influente na construção de soluções para tais questões, uma vez que para garantir a convivência harmoniosa e pacífica no seio de uma sociedade plural, como as atualmente existentes, é fundamental que o Estado se reconheça como pluricultural e direcione os seus esforços no sentido de elaborar e executar políticas nesse campo que possam trazer, democraticamente, a realização existencial de todos.


Nesse sentido, dispõe a Declaração Universal da Diversidade Cultural, em seu artigo 2º, que: “As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública”.


Um exemplo de reconhecimento da importância da valorização do pluralismo cultural pode ser visto na cidade de São Gabriel da Cachoeira, município do estado do Amazonas, na qual são falados 18 idiomas e que tem cerca de 95% da população indígena; e que, desde 2002, por meio da Lei municipal n. 145, de 22 de novembro de 2002, tem mais três línguas oficiais – tukano, baniwa e nheengatu - ao lado do português. Além disso, a lei garante ainda que os documentos públicos e o atendimento nas repartições públicas de São Gabriel da Cachoeira sejam feitos nas quatro línguas oficiais do município 5.


Para superar as dificuldades de implantação da lei, o município, em parceria com o Instituto Federal do Amazonas (IFAM), criou um curso de formação em nheengatu 6 para professores e demais servidores do campus de São Gabriel para suprir também as carências que a grande diversidade linguística da região proporciona, uma vez que, só no Amazonas, vivem atualmente 69 povos indígenas e são falados 30 idiomas.

Logo, essas ações são um vislumbre do que o Estado e municípios podem realizar para proteger e promover a diversidade de expressões culturais e, mais especificamente, o direito à vida em sentido amplo de indivíduos e suas comunidades.


Mas é preciso o reconhecimento dessa realidade plural e disposição (políticas culturais) para cuidar dela, pois no mesmo momento em que se criam iniciativas com a finalidade de garantir a preservação e o desenvolvimento de identidades culturais, também se deixam caminhar para o desaparecimento outras, como é o caso do risco previsto de extinção de 30% das línguas indígenas no Brasil nos próximos quinze anos, quer por envelhecimento da população e não disseminação dos idiomas entre a população mais jovem quer por meio das “políticas de integração negativas” do Estado. Isto é, pela ineficiência ou não prestação dos serviços públicos necessários para cumprir seus deveres constitucionais, tais como a educação e saúde para todos, inclusive para grupos minoritários nacionais.

*Marcus Pinto Aguiar, mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), advogado, doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACO Brasil, professor da Faculdade Alencarina de Sobral (FAL) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

1. População maior que a de muitos países, entre eles: Luxemburgo, Islândia e Andorra; só para citar algumas nações europeias.

2. IBGE. População Residente em Áreas Indígenas e Quilombolas para Ações de Enfrentamento à Pandemia Provocada pelo Coronavírus 2020 - Subsídios para o Ministério da Saúde visando ao Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19. Rio de Janeiro, 2021, Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101859.pdf. Acesso em 12.abr.2022.

3. Segundo o Estatuto do Índio (Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973), em seu artigo primeiro: “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.

4. SARTORI, Giovanni. La sociedad multiétnica: pluralismo, multiculturalismo y extranjeros. Editor digital: Titivillus. Disponível em: < https://www.researchgate.net/publication/39081666_SARTORI_Giovanni_La_sociedad_multietnica_Pluralismo_multiculturalismo_y_extranjeros >. Acesso em 12.abr.2022.

5. ABDALA, Vitor. Línguas indígenas ganham reconhecimento oficial de municípios

Fonte: Agência Brasil. Atualizado em 7.jul.2016a. Disponível em:

<https://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2014-12/linguas-indigenas-ganham-reconhecimento-oficial-de municipios#:~:text=Publicado%20em%2011%2F12%2F2014,ao%20mesmo%20status%20do%20portugu%C3%AAs. >. Acesso 12.abr.2022.

6. O nheengatu é a língua indígena mais falada não apenas no município de São Gabriel da Cachoeira, mas na região como um todo; além de servir de elo de comunicação entre as diversas tribos e entre indígenas e não indígenas.

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