Em meio às pandemias do coronavírus, de autoritarismos, de genocídios indígenas – me deparo com uma notícia animadora. Após a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston, em Bristol, arremessada ao rio, os ativistas antirracistas continuaram seu movimento de protesto e substituíram a nefasta escultura escravagista pela estátua de Jen Reid, manifestante que foi fotografada sobre o pedestal após a eliminação do ultrajante marco. Isso demonstra que só a iconoclastia da retirada não basta. É preciso substituição, formação, educação, projetos políticos e políticas públicas que possibilitem a reflexão, o questionamento, o debate e a reivindicação. Esses preitos públicos a escravizadores, assassinos, ditadores, catequizadores, enfim, a toda sorte de exercício da força e do arbítrio sobre o outro, não só podem como devem ser revistos.
Como convivemos com tantos topônimos que se curvam a ícones da violência e da bestialidade, do obscurantismo? Como aceitamos a existência de inúmeras avenidas Getúlio Vargas espalhadas pelo país? Ponte Presidente Costa e Silva (sim, esse é o verdadeiro nome da ponte Rio-Niterói)? Escolas Marechal Costa e Silva?
Porque em nosso país, a crise da educação não é uma crise, é um projeto, já ensinou o libertador Darcy Ribeiro. Esse sim digno de estátuas, bustos, memoriais, e diferentes homenagens, entre elas a mais importante: ser ouvido.
Estátuas e bustos de Cristóvão Colombo, de Jefferson Davis (presidente dos Estados Confederados durante a Guerra da Secessão), do rei belga Leopoldo II, de Winston Churchill, do padre António Vieira, entre outras, já sentiram o peso da indignação daqueles que não suportam os tributos destinados a quem impuseram domínio, religião, indiferença e brutalidade. Duque de Caxias, Manuel de Borba Gato, Fernão Dias, Bartolomeu Bueno da Silva – o Anhanguera, que coloquem suas barbas de molho, pois os brasileiros e brasileiras não estão alheios a esse movimento. Eles não caíram de seus pedestais nem tiveram seus nomes retirados por completo, dos topônimos das cidades. Ainda!

Algumas poucas exceções começam a nos alimentar de esperança democrática. No Maranhão, o governador Flávio Dino assinou decreto em 2015 que determinou a mudança de nomes de escolas que sustentavam títulos de personalidades apresentadas no relatório da Comissão da Verdade, acusados por crimes de tortura durante a ditadura civil-militar. Por exemplo, o Centro de Ensino Castelo Branco passou a ser nomeado C.E. Vinícius de Moraes; o C. E. Emílio Garrastazu Médici, C. E. Paulo Freire.
Em Goiânia, o pedestal que serve de apoio ao brutal Anhanguera é constantemente alvo de manifestações (ver fotos): "quilombo resiste"; "Fora Temer"; "Marielle vive". Não são vandalismos banais como querem intitular os mais conservadores. Os monumentos, e o patrimônio cultural edificado como um todo, são alvos de reivindicações pela sua ressonância e sua exposição. Isso também passou a ser uma das funções do monumento. O oprimido não deve hospedar o opressor em si, instruiu Paulo Freire. Estátua para ele! Não deixemos nosso ego despersonalizado, vociferou Frantz Fanon. Busto dele já!
Se esses reclames não forem identificados como gritos de apelo por um dever de justiça e dever de memória, como prepondera Paul Ricœur, em breve teremos na Esplanada dos Ministérios bustos de Brilhante Ulstra, major Curió e Sérgio Paranhos Fleury. Que cumpramos nosso dever, para que as pombas não tenham que, uma vez mais, fazer o delas.
Após a entrega desse artigo à editora, a notícia animadora do início do texto sucumbiu a mais uma interpelação dos conservadores. A estátua instalada pelos manifestantes antirracistas foi retirada pelo governo de Bristol sob o argumento pífio de que o artista não teria licença para a instalação.
Sigamos!
Yussef D. S. Campos
Professor da Faculdade de História e dos Programas de Pós-Graduação em História e ProfHistória, da UFG.
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