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O direito ao livro e à leitura


Gabinete Real de Língua Portuguesa no Rio de Janeiro


Em tempos de isolamento social, imposto como norma sanitária para conter o avanço desenfreado do novo coronavírus, eis que, desde o ano passado, ficamos reféns em nossas próprias residências. Fomos obrigados a nos reinventar para dar conta de permanecer em casa. Ainda hoje, alguns se refugiam na música, outros na internet e redes sociais, assistem a filmes e às lives de seus artistas preferidos. Há até aqueles que se aventuram na cozinha em novas experiências gastronômicas.


Desde a infância fui um leitor inveterado, quando acometido de crise asmática, as brincadeiras no quintal da casa ou na rua eram substituídas por gibis e exemplares da coleção Mundo da Criança. Como filho de Francisco, meu pai e professor de Língua Portuguesa, o livro era um objeto presente em nossa residência e sempre foi meu companheiro.


Reitero as palavras do escritor e bibliófilo José Midlin quando disse, em uma de suas entrevistas, que “não seria feliz em um país em que não houvesse livros. Sem a leitura eu não seria o que sou”. Nesse momento, em meio à pandemia da Covid-19, os livros passaram a ocupar um lugar ainda mais central nos meus dias de isolamento e solidão. São esses artefatos culturais que nos permitem conservar a sanidade psíquica e emocional, diante de tantos casos de morte de parentes e amigos.


Mas, por que o livro? Será que ele possui o efeito mágico de nos proporcionar alguns momentos de prazer e resiliência para enfrentar o atual cenário de descontrole governamental no combate à pandemia? Em um mundo globalizado que convive com outros suportes de comunicação, tais como internet, redes sociais e plataformas digitais, por que o livro ainda assume um papel proeminente na nossa sociedade?


Acreditava-se que com o advento dessas novas tecnologias da informação, o livro impresso estaria com seus dias contados. Só que, felizmente, isso não ocorreu. O escritor italiano Umberto Eco, na sua obra magistral “Não contem com o fim do livro”, já dizia que: “... se o livro eletrônico terminar por se impor em detrimento do livro impresso, há poucas razões para que seja capaz de tirá-lo de nossas casas e de nossos hábitos. Portanto, o e-book não matará o livro – como Gutenberg e sua genial invenção não suprimiram de um dia para o outro o uso dos códices, nem este, o comércio dos rolos de papiros ou volumina. Os usos e costumes coexistem e nada nos apetece mais do que alargar o leque dos possíveis. O filme matou o quadro? A televisão, o cinema? Boas-vindas então às pranchetas e periféricos de leitura que nos dão acesso, através de uma única tela, à biblioteca universal doravante digitalizada”.


A par de todo o avanço tecnológico da era digital, o livro ainda tem o seu lugar garantido no mundo da cultura. É ele, em grande parte, responsável pela memória do mundo ao trazer, desde séculos e milênios, o conhecimento acumulado e sistematicamente produzido pela sociedade.


Não há quem possa negar que o livro, seja ele infantil, romance, ficção científica ou didático, é um importante bem cultural da humanidade; seja em que suporte material ele se apresente, é um instrumento indispensável para a formação da cidadania, ao possibilitar o acesso à informação e à cultura.


Jorge Luís Borges tem razão ao afirmar que: “Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida, o livro. Os demais são extensões de seu corpo. O microscópio, o telescópio são extensões de sua visão; o telefone é extensão de sua voz; em seguida, temos o arado e a espada, extensões de seu braço. O livro, porém, é outra coisa: o livro é extensão da memória e da imaginação”.


Bem sabemos que nosso país é marcado por profundas desigualdades e contradições sociais. O Brasil tem a maior produção editorial da América Latina e é responsável por mais da metade dos livros publicados na região. Além disso, nossos livros primam pela qualidade gráfico-editorial e possuímos uma grande quantidade de editoras concentradas nas regiões Sul e Sudeste.


No entanto, em pleno século XXI, cerca de 30% dos brasileiros mal sabem ler e escrever seu próprio nome e, por conta do baixo nível de escolarização, não desenvolveram habilidades suficientes que os permitam compreender um simples texto ou realizar operações matemáticas na vida cotidiana. São considerados “analfabetos funcionais”.


A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (5ª edição, 2020), coordenada pelo Instituto Pró-Livro e com o apoio da Câmara Brasileira do Livro (CBL), Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e Associação Brasileira dos Editores de Livros (Abrelivros), trouxe alguns indicadores sociais acerca da situação do acesso ao livro e à leitura no país: o brasileiro lê, em média, cinco livros por ano, sendo aproximadamente 2,4 livros lidos apenas em parte e, 2,5 livros inteiros.


Entre os entrevistados, 4% disseram não saber ler, outros 19% disseram ler muito devagar; 13% não têm concentração suficiente para ler; e 9% não compreendem a maior parte do que leem. De 2015 para 2019, a porcentagem de leitores no Brasil caiu de 56% para 52%. Já os não leitores, ou seja, brasileiros com mais de 5 anos que não leram nenhum livro, nem mesmo em parte, nos últimos três meses, representam 48% da população, o equivalente a cerca de 93 milhões de um total de 193 milhões de brasileiros.


Ainda segundo a pesquisa, 5% dos leitores e 1% dos não leitores disseram não ter lido mais porque os livros são caros; e 7% dos leitores e 2% dos não leitores não leram porque não há bibliotecas próximas.


Para a mudança desse quadro desalentador duas instituições são fundamentais se quisermos, de fato, construir uma sociedade leitora e letrada: a escola e a biblioteca. Aliás, os especialistas em políticas culturais são unânimes em considerar que a melhor forma de democratizar o acesso da população ao livro é incentivar a implantação de bibliotecas em todos os municípios brasileiros, dotando-as de um acervo atualizado e integrado à rede mundial de computadores, que permita a todos o acesso aos acervos e livros digitais.


Além disso, é preciso ampliar o número de livrarias e pontos de venda de livros, uma vez que há também um déficit de livrarias no país. Infelizmente, não é isso que aconteceu nos últimos anos: em grande parte decorrente da pandemia, muitas livrarias e até mesmo bancas de revistas, que também comercializavam livros, se viram obrigadas a encerrar suas atividades. Assim, além das bibliotecas que foram obrigadas a fechar nesse período pandêmico, perdemos um importante espaço de deleite para os que são amantes do livro e da leitura - a livraria física.


Não custa nada reivindicar que o acesso ao livro e à leitura constitua um direito cultural. Os homens públicos e gestores devem ter em mente que somente com o acesso de todos os brasileiros à informação é que teremos uma sociedade mais democrática, inclusiva e cidadã. Infelizmente não é isso o que pensa o atual governo federal que, no contexto de sua política econômica de ajuste fiscal, propõe uma reforma tributária e cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que deverá incidir sobre o livro. Isso irá provocar, com certeza, um aumento no preço do livro, dificultando ainda mais o seu acesso a amplas camadas da população.


Por outro lado, não temos a ingenuidade de considerar o livro panaceia para os problemas de nosso país. No entanto, não podemos desconsiderar aquilo que dissera o príncipe dos poetas, Olavo Bilac, ainda mais nos tempos atuais de isolamento em virtude da pandemia: “Os livros não matam a fome, não suprimem a miséria, não acabam com as desigualdades e com as injustiças do mundo, mas consolam as almas, e fazem-nas sonhar”.


Ricardo Oriá - Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Consultor Legislativo da área de educação, cultura e desporto da Câmara dos Deputados. É autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro “O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira” (E. Annablume, 2011). Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). E-mail: groof@uol.com.br.

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