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Memoricídio Nacional: Dois anos de uma tragédia histórica

Atualizado: 6 de set. de 2020




Peter Burke disse, de forma muito acertada, que a função social do historiador é lembrar a sociedade daquilo que ela quer esquecer. Partindo dessa premissa, como profissional da História e defensor do patrimônio cultural brasileiro, venho, por meio deste artigo, lembrar o episódio ocorrido no dia 2 de setembro de 2018: o trágico incêndio que destruiu o prédio e dizimou o acervo de nossa mais antiga instituição museológica- o Museu Nacional.


Há um velho jargão popular que diz: “O Brasil é um país sem memória!”, usado muitas vezes para explicar essas situações como o incêndio do Museu Nacional. Uma análise mais crítica leva-nos a considerar que tal assertiva não corresponde à verdadeira realidade. O Brasil tem sim uma memória. Memória essa alicerçada na diversidade étnico-cultural de nossa formação histórica. Constituímos, no decorrer da história, um rico e inestimável Patrimônio Cultural, que se traduz em uma infinidade de bens culturais que devem e precisam ser melhor preservados para as atuais e futuras gerações. Parte desse acervo de bens culturais é inclusive reconhecido internacionalmente.


Até a presente data, o Brasil possui, no total, 21 bens materiais declarados Patrimônio Cultural da Humanidade e cinco bens imateriais incluídos na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O que se constata é o descaso de diversas instâncias do Poder Público e das próprias elites políticas e intelectuais quanto ao processo de conservação e manutenção de nossos equipamentos culturais. Não é de hoje a triste constatação de outros fatos semelhantes, ocorridos na história do país, que revelam a negligência do Poder Público, que tem a obrigação constitucional de preservar a memória nacional.


Apenas para exemplificar, nos últimos dez anos, alguns museus e instituições culturais e científicas sofreram incêndio que danificou suas instalações prediais e destruiu seus respectivos acervos: Instituto Butantan (2010); Memorial da América Latina (2013); Museu da Língua Portuguesa (2015); Cinemateca Brasileira (2016) e Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG (2020). Além do incêndio, que compromete a preservação de nosso patrimônio cultural, temos também o problema da segurança nos museus contra furtos, roubos e tráfico ilícito de bens culturais. Em 2006, o Museu da Chácara do Céu, localizado no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro, foi vítima do maior roubo ocorrido em um museu brasileiro, estimado à época em 10 milhões de dólares, pois foram roubadas obras de Salvador Dali, Picasso, Matisse e Monet.


Nossa Constituição Federal erigiu os direitos culturais à condição de direitos fundamentais, indispensáveis ao exercício da cidadania (art. 215, caput). Entre esses direitos culturais, encontra-se o direito à memória que se materializa mediante a ação do estado e da sociedade na defesa e valorização de seus bens culturais. O direito à memória pode ser compreendido como o direito de todo ser humano ao usufruto e acesso aos bens materiais e imateriais que representem o seu passado, à sua tradição e à sua História.


Segundo o filósofo e ex-ministro de estado da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, “O indivíduo privado do uso desse direito é um indivíduo condenado à amnésia social e à anomia, e esse direito é ignorado quando igrejas barrocas caem por causa de uma chuvarada em Ouro Preto ou quando monumentos importantes em Olinda ou na Bahia estão ameaçados de desabamento” (1).


Podemos também dizer que o direito à memória nos foi subtraído com o incêndio do Museu Nacional. Isso porquê o Palácio da Quinta da Boa Vista, como era mais conhecido, antes de se tornar o principal Museu de História Natural e Antropologia da América do Sul e ser tombado pelo IPHAN desde 1938, tem uma longa história que merece ser contada.


O Palácio de São Cristóvão foi moradia de D. João VI e dos imperadores D. Pedro I e D. Pedro II, tendo sido ocupado desde o ano de 1808 (transferência da Corte Portuguesa para o Brasil) até 1889 (implantação da República e exílio de D. Pedro II na Europa). Lá ocorreram importantes fatos históricos, tais como: realização da sessão do Conselho de Estado, presidida por D. Leopoldina, que decidiu pela independência do país; abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho; nascimento e infância de D. Pedro II e sua filha Isabel e realização da primeira Assembleia Constituinte da República e posterior promulgação da Constituição de 1891. Constitui, portanto, um lugar de memória da nação brasileira.


No ano em que se comemorava seus 200 anos, a nossa mais antiga instituição museológica foi atingida por um incêndio, que poderia ter sido evitado, conforme atestam as advertências feitas pela própria direção do Museu e balizada na opinião de técnicos e especialistas em segurança de acervos culturais. Foi, portanto, uma tragédia anunciada, conforme amplamente divulgado na imprensa nacional e internacional. A perda irreparável de cerca de 20 milhões de objetos museológicos de seu acervo constitui um memoricídio (2), ou seja, uma intenção deliberada de destruir os traços da existência cultural e histórica de uma determinada sociedade.


Tragédias como essa, que dizimou um verdadeiro patrimônio cultural da humanidade pela riqueza de seu acervo constituído durante dois séculos, comprometem não só a imagem do país no exterior, mas principalmente revela o pouco apreço que nossas elites políticas e a população de modo geral têm com a preservação do patrimônio histórico.


Que saibamos tirar desse triste fato as lições necessárias para um real e efetivo compromisso com a memória nacional! E, a dois anos de comemorarmos o Bicentenário da Independência do Brasil (2022), seria muito bom que, ao invés da realização de festas ufanistas e inauguração de monumentos, como usualmente costuma acontecer na celebração dessas efemérides, o Museu Nacional, já devidamente restaurado, pudesse ser reaberto para o deleite de todos os brasileiros.


Ricardo Oriá

Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Consultor Legislativo da área de educação, cultura e desporto da Câmara dos Deputados. É autor de artigos sobre patrimônio cultural e museus e do livro O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar brasileira (E. Annablume, 2011). E-mail: groof@uol.com.br.



(1) ROUANET, Paulo Sérgio. “Políticas Culturais: novas perspectivas”. In: ALMEIDA, J. Cândido Mendes de. Marketing Cultural ao Vivo: depoimentos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p. 83.


(2) Memorícidio é um neologismo criado pelo médico croata Mirko Gmerk para designar a destruição cultural de algumas etnias, ocorrida durante a Guerra dos Balcãs, que resultou na dissolução da Iugoslávia (BEIGUELMANN, Gisele. Memória da Amnésia: políticas do esquecimento. São Paulo: Edições SESC, 2019, p. 216).



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