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Direito autoral no Youtube: liberdade ou arbitrariedade?


*Imagem: Mizter_X94 ; CC BY


A regra determinada pelo art. 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, Decreto-lei nº 4.657/42, é que a lei, não sendo de vigência temporária, terá vigor até que outra a modifique ou a revogue. Ou seja, apenas uma outra lei, feita pelo Poder Legislativo, pode revogar uma lei atualmente em vigor.


No entanto, com a Lei brasileira de Direitos Autorais (nº 9.610/98) parece ocorrer algo diferente: ela está sendo “revogada” pelo ambiente digital. Isto porque as suas disposições, que parecem ser tão defasadas para tratar das questões do mundo “real”, são, deliberadamente, afastadas no trato dos conflitos de interesses existentes no mundo virtual.


Um exemplo prático desse fenômeno é o Youtube que, sob um discurso de liberdade, permite que os indivíduos, por si só, decidam os limites de uso das suas obras intelectuais nos vídeos postados na plataforma. Assim, respeitados os Termos de Uso e as Diretrizes da Comunidade, regras determinadas pela própria plataforma para todos aqueles que a utilizam, o indivíduo é “livre” para determinar os modos de uso de seu conteúdo autoral.


Ocorre que essa “liberdade” individual, na verdade, é exercida ignorando as disposições da legislação brasileira, além do que favorece os grandes detentores de conteúdo protegido por direito autoral.


O famoso Content ID, ferramenta tecnológica do Youtube que vasculha toda a plataforma em busca de “infrações a direitos autorais”, que significa qualquer uso em desacordo com o que o “dono da obra” determinou, somente pode ser utilizado por grandes usuários, já que exige deste toda uma equipe e infraestrutura adequadas para gerenciar a referida ferramenta (usuários com pouco conteúdo podem utilizar outras ferramentas de menor potencial, como os avisos de notificação e o Copyright Match Tool).


Na prática, funciona assim: o titular da obra intelectual, após ser aprovado pelo Youtube para usar o Content ID, (a análise leva em consideração diversos critérios, dentre eles a quantidade de conteúdo que o titular pretende gerenciar, que deve ser “complexa”, de acordo com a plataforma) irá compartilhar com a plataforma o seu banco de dados de conteúdo e, a partir daí, o robô irá, automaticamente, fazer uma varredura em toda a plataforma, em busca de vídeos que estejam utilizando as obras protegidas.


Caso dê “match”, ou seja, se o Content ID encontrar um conteúdo que seja similar ao que existe no banco de dados do titular, ele dá a este as seguintes opções: rastrear o vídeo, que simplesmente impede que o terceiro “infrator” monetize o vídeo, apenas coletando estatísticas de views para o titular; monetizar o vídeo, ou seja, o titular insere anúncios no vídeo do terceiro “infrator” e ganha com isso ou bloquear o vídeo, que impede sua visualização na plataforma.


Importante dizer que essa decisão é absolutamente unilateral. Apesar do Youtube abrir a possibilidade de o usuário prejudicado questionar a decisão, o fato é que quem decide, no final das contas, o que ocorrerá com o vídeo postado é o titular da obra utilizada “indevidamente”.


Ocorre que o Content ID nada sabe sobre direito autoral ou sobre a Lei nº 9.610/98, especialmente acerca das denominadas limitações ao direito autoral previstas no artigo 46 da norma, no qual estão previstas diversas formas de usos lícitos de obras intelectuais de terceiros sem prévia autorização destes, tais como a paródia e o uso de pequenos trechos.

Assim, diversos vídeos que se utilizam dessas limitações legais, regras estas que visam equilibrar os direitos do autor com o direito ao conhecimento e à cultura, são barrados pelo robô por não estarem de acordo com o que foi imposto pelo titular da obra intelectual.


Ou seja, sob um pretexto de liberdade, o que ocorre é, na prática, uma imposição de interesses individuais (leia-se aqui de grandes empresas do ramo do entretenimento) sobre o direito coletivo de acesso à cultura e ao conhecimento, ignorando o disposto na lei e tornando a plataforma de conteúdo mais vista no mundo um lugar de pouca liberdade de fato.


A posição de “neutralidade” declarada pela plataforma permite que grandes detentores de conteúdo imponham seus interesses em detrimento do que diz a lei. Não é de se estranhar, portanto, que estejam surgindo cada vez mais decisões judiciais questionando (e barrando) o poder da plataforma de retirar conteúdos que se utilizam licitamente das limitações do artigo 46.


Até quando o mundo virtual permanecerá alheio às regras legais? Até quando o interesse individual/corporativo triunfará em detrimento do direito de acesso ao conhecimento e à cultura?


Cecilia Rabêlo - Advogada, mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

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