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Diálogo e afeto para bem decidir no Direito

Atualizado: 24 de mai. de 2022


Imagem: Diálogo a três (Luís Soares)


No último dia 7 de julho, o Poder Judiciário de primeira instância do Estado de São Paulo proferiu decisão no Processo Digital nº 1095057-92.2018.8.26.0100, em sede de Ação Civil Pública (ACP), promovida pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP), em face do humorista e youtuber Júlio Cocielo, “em que se pretende a condenação do requerido ao pagamento de indenização de R$ 7.489.933,00 por dano social que viola a dignidade da pessoa humana”.


A sentença foi pela improcedência do pedido de condenação do humorista ao entender o juiz que o requerido se utilizou da “zombaria de estereótipos”, com a intenção de promover a reflexão sobre o “ranço discriminatório que ainda existe na sociedade”.


Levanta ainda o magistrado uma questão importante para analisar a fala do humorista e tentar estabelecer os limites entre o racismo e a liberdade de expressão: se o discurso é humorístico e se aproveita dos “estereótipos da sociedade para, inclusive, denunciá-los, a fim de que se mudem as coisas” ou se as declarações contribuem para o fortalecimento do racismo da sociedade brasileira, como entende o Ministério Público.


Concluindo pela “total ausência de intencionalidade no discurso humorístico do requerido que se permita inferir, ainda que remotamente, que ele seja racista e que esteja a fazer apologia ou induzindo terceiros ao racismo”.


Por seu turno, o autor da Ação (MPSP) apresenta diversos posts do humorista na tentativa de comprovar que há uma conduta racista reiterada presente desde 2010 e que suas “piadas” só reforçam o “racismo na sociedade brasileira”; diga-se, todos os argumentos foram interpretados pelo magistrado sob a mesma ótica de que não houve prática de racismo.


Sabemos que dentro de um contexto democrático, a liberdade de expressão significa conviver não apenas com o que se gosta, mas também de aceitar ouvir o que é desagradável e o que se considera ofensivo dentro da moral pessoal ou do grupo.


No entanto, a questão toma proporções maiores quando o conflito judicializado remete às disputas entre a liberdade de expressão e o racismo, uma vez que os direitos culturais encontram limites diante de condutas que possam violar direitos humanos e menoscabar a dignidade da pessoa humana, além de fomentar o ódio, a violência e a exclusão social.


No caso em questão, o juiz elabora a sua sentença dentro de uma fundamentação construída ponderando aspectos importantes, tais como o papel do humor, questões de linguagem e a sua dimensão pragmática, aproximação entre psicanálise e humor, direito à livre expressão artística e de pensamento, discursos discriminatórios, racismo, entre outros, fundamentando-se em autores de variadas ciências e artes, além de respaldo jurisprudencial nacional e internacional.


Todavia, até o próprio Poder Judiciário costuma entender que atribuir à prestação jurisdicional, por meio da sentença, o condão de resolver o conflito é apenas uma questão procedimental, não do mundo da realidade fática. Daí o Conselho Nacional de Justiça, desde longas datas, insistir em mudanças não apenas de cunho normativo, mas também no âmbito de políticas públicas, para a promoção da utilização de métodos que sejam considerados mais adequados ao tratamento de conflitos no Judiciário (ou extrajudicialmente), tais como: a mediação, conciliação, justiça restaurativa, círculos de paz, entre outros.


Aqui, entendemos que para romper com condicionamentos no campo da cultura jurídica, que se agarram a parâmetros normativos e procedimentais rígidos, é preciso conceber a possibilidade de experienciar uma relação conflituosa como uma oportunidade de se buscar, dialógica e colaborativamente, um tratamento adequado às disputas, em plena conformidade com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil: tanto o da “solução pacífica de conflitos” (artigo 4º, VII, da CF/1988) quanto o da promoção do bem de todos, sem preconceitos e quais outras formas de discriminação, conforme artigo 3º, IV, da CF/1988.


O youtuber acusado de racismo têm quase 7 milhões de seguidores, enquanto a população que se declara negra no Brasil passa de 100 milhões, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE. E o Estado poderia dar uma importante contribuição para a questão do racismo, independentemente do resultado da prestação jurisdicional, por meio da promoção do diálogo entre as partes e possíveis ofendidos, direta e indiretamente, para buscar de forma colaborativa uma solução interpartes e que vislumbrasse um maior ganho social.


A pergunta então poderia ser posta da seguinte forma: como o magistrado para sua decisão final poderia aproveitar mais uma oportunidade de resolver conflito tão agudo e que transtorna nossa sociedade, tirando a paz de milhões de pessoas por causa da cor de sua pele e do racismo estrutural, sem descurar da dimensão normativa, mas incluir outros métodos adequados para construir uma decisão que possa contribuir com a paz social?


Os “novos” métodos para tratamento adequado de conflitos, conforme dispostos primariamente na Resolução 125/2010 do CNJ, têm potencialidade para promover o diálogo e a colaboração entre as partes porque permitem que as pessoas expressem os seus sentimentos, e que os outros os validem e os valorizem, de tal forma que este movimento gere maior confiança entre os envolvidos; e é deste sentimento de confiança que nasce a responsabilidade e o respeito mútuos, muito mais do que das decisões judiciais e comandos legiferantes, mesmo que provenientes da esfera constitucional.


Somente a partir desta revolução dentro da cultura jurídica é que se pode pensar na construção de uma sociedade que construa os seus “valores supremos”, conforme orienta o Preâmbulo constitucional, para a promoção de uma cultura de paz e uma cidadania ativa, características essenciais de uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

*Marcus Pinto Aguiar, mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), advogado, doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)


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