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Devolvam nossa galinha


Bob Nicholls/Reprodução


Leia mais em: https://super.abril.com.br/ciencia/ubirajara-a-polemica-do-dinossauro-brasileiro-preso-num-museu-alemao/

O fóssil do dinossauro Ubirajara Jubatus, encontrado no Ceará e tido como uma das peças mais interessantes da coleção do Museu de História Natural de Karlsruhe (SMNK), é alvo de disputa com paleontólogos no Brasil. Ubirajara Jubatus, o dinossauro em questão, é datado do período Cretáceo e viveu há cerca de 110 e 115 milhões de anos. Descoberto no Ceará, entre os munícipios de Nova Olinda e Santana do Cariri, trata-se da primeira espécie não aviária encontrada com penas preservadas na América Latina. Daí o nome de “aves do paraíso”. Sua importância dá-se pela presença de penas alongadas usadas para a atração sexual, característica só vista em espécies mais atuais. Segundo a Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), o material foi retirado ilegalmente do Brasil. No entanto, a instituição alemã afirma que não devolverá a peça, argumentando que o fóssil chegou ao país antes da entrada em vigor da convenção internacional que estabelece a devolução dos artefatos e que, por isso, ele é legalmente propriedade do estado alemão de Baden-Württemberg, onde fica Karlsruhe.

Embora a convenção da Unesco seja da década de 1970, a Alemanha só se tornou membro dela em 2000, e uma outra lei doméstica, de 2016, determina que todo material levado para o país antes de 26 de abril de 2007 é considerado como propriedade do país.

“Ele [fóssil] foi adquirido antes da entrada em vigor da Convenção da Unesco sobre os Meios de Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência Ilícita de Propriedade de Bens Culturais, e importado em conformidade com todas as regulamentações alfandegárias e de entrada” argumenta o governo de Baden-Württemberg.

Ora, se o bem paleontológico entrou na Alemanha em 1995, não estando sob os auspícios da dita Convenção, a legislação alemã nada impediria a devolução do fóssil se houvesse boa vontade do governo, como preceitua o ditame legal da Unesco; ou, quiçá, ainda, doar o bem cultural ao Brasil, caso fosse o interesse do museu, já que somos signatários da Convenção desde 1973 – como aconteceu recentemente com alguns bens culturais pertencentes à Benin.

São notórios a má interpretação da normativa internacional e o aproveitamento de brecha legal para afirmar a posse do bem – ou a resistência colonialista em devolver o fóssil, pautada no “a lei não retroage”. Faltou esclarecer algumas especificações da atuação da UNESCO e de suas normativas aos envolvidos.

O Comitê para Promoção do Retorno de Bens Culturais aos seus Países de Origem ou à sua Restituição em Caso de Apropriação Ilícita, de 1978, foi criado para encorajar as negociações bilaterais e ajudar os países nos casos em que convenções não podem ser aplicadas (Art. 4, parágrafo 1º). Para corroborar as normativas internacionais, o glossário do Museum Security Network, de 2010, elucida que “[…] a devolução de um bem cultural pertencente a uma coleção de museu dar-se-á para uma parte que seja considerada o verdadeiro proprietário ou possuidor tradicional […]”.

Ao não serem compelidos a devolver tais bens, os museus europeus, então, atuam apenas como agentes do (mercado) estado, confirmando assim os privilégios das “nações” e instituições.

Não bastando, o mais importante é que no caso de propriedade pública – característica dos fósseis desde o Decreto-Lei 4.146/1942, em seu Art, 1º; recepcionado pela Constituição de 1988, em seu Art. 216, parágrafo V – não há necessidade de uma lei para iniciar o processo de devolução. Uma decisão administrativa é suficiente para garantir a remoção dos objetos da coleção, por esses serem considerados bens públicos. Portanto, desde 1942, é proibido vendê-los e é obrigatório ter uma autorização para retirá-los do país.

Segundo o artigo publicado em 2020 na revista científica Cretaceous Research, houve a autorização para essa transferência, concedida pelo escritório regional do antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atual Agência Nacional de Mineração (ANM). Só faltou a permissão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) com o detalhamento do que seria feito com as peças e o período de retorno delas, além da autorização do Siscomex emitida junto à Receita Federal e fiscalizada pela Polícia Federal.

Para piorar a situação, a Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) garante que o documento que autorizou a exportação do fóssil trazia dados genéricos, se referindo a apenas duas caixas de fósseis, sem constar as características, como a quantidade de bens, e sem especificar o uso do material na transferência internacional. Além disso, a referida autorização foi assinada por um funcionário condenado por fraudar laudos para extração de esmeraldas. Por essas razões, a entidade, ainda, questiona a validade do documento, por ser uma autorização fria, sem validade.

Mesmo que todos esses atos burocráticos tenham sido respeitados, uma portaria do MCTI, de 1990, proíbe a saída do território nacional dos chamados holótipos — exemplares usados como referência na descrição das espécies —, como é o caso do fóssil do Ubirajara. A devolução do dinossauro ao Brasil é normativa.

O tráfico internacional de fósseis do Brasil é antigo. É sabido que países do hemisfério sul são membros da Convenção da Unesco de 1970, em sua grande maioria, sem reservas de artigos. Em contrapartida, por puro reflexo das colonizações – ainda praticadas em tempos atuais, por meio de remoções, apropriações irregulares ou ilegais de bens culturais e naturais das então colônias, como o Brasil –, as “grandes potências”, países do hemisfério norte, como Estados da União Europeia e da América do Norte, internalizaram a referida Convenção com reservas (caso da Alemanha) ou sequer dela fazem parte.

O argumento internacionalista de que a propriedade do patrimônio cultural cabe a quem teria mais condições de salvaguardá-lo ou permitir seu acesso a todos, que poderiam quiçá referir-se aos incêndios que acometeram algumas instituições nacionais, não se fundamenta. O Museu Nacional não representa todas as instituições culturais do Brasil. Há pelo menos cinco dezenas de instituições culturais nacionais, com estruturas iguais ou melhores que tal museu alemão, que salvaguardam bens paleontológicos e poderiam receber esse material. É contraproducente alegar que é preciso primeiro aprimorar as estruturas das instituições brasileiras.

Claro que é preciso mais investimentos em instituições no Brasil. No entanto, deparamo-nos com um movimento cíclico, e não dicotômico, já que os museus, para lograr financiamentos, precisam de coleções que atraiam o público para terem mais visitas e daí obterem mais verba para sua manutenção. Muitas vezes, o porquê de os museus brasileiros serem descreditados em relação a seus homólogos europeus ou norte-americanos, não é mais pela infraestrutura, mas o material visitado.

Os incêndios de instituições culturais, assim como os saques, ocorrem desde a Antiguidade. São exemplos os incêndios da biblioteca de Heidelberg, situado em Baden-Württemberg, em 1693; do Neues Museum, localizado em Berlim e destruído na Segunda Grande Guerra; do museu de História Nacional, de Nova Iorque, em 2014; e o da Catedral de Notre Dame, em Paris, em abril de 2019.

Tanto o direito doméstico quanto internacional têm demonstrado insuficiências nas leis e nos meios jurídicos para se combater o tráfico ilícito de bens culturais e devolvê-los ao seu devido possuidor ou proprietário, na medida em que essas transações sofrem influências de política de poder dos estados, como acontece com o nosso dinossauro Ubirajara Jubatus.

*Anauene D. Soares é advogada, perita e restauradora de obras de arte. Autora da obra Direito Internacional do Patrimônio Cultural: tráfico ilícito de bens culturais e associada do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais




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