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A ampliação do acesso à internet e a convivência com a pandemia estimularam o repensar de muitos - quiçá todos – os aspectos da vida, o que, por óbvio, atingiu a esfera dos Direitos Culturais. Algo que se manifesta, por exemplo, no processo já iniciado para a revisão da Carta Ibero-Americana de Direitos da Cultura, e no evento que será realizado nos próximos dias 23 e 24 de maio de 2022, na Suíça, para rediscutir os termos da Declaração de Friburgo, documento que também versa sobre os mencionados direitos, para o qual fui convidado a contribuir na condição de representante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (GEPDC/PPGD/UNIFOR).
A contribuição que se pretende aportar consiste em produzir reflexões sobre o Artigo 9º do documento, dispositivo que trata dos “princípios de administração democrática”. A escolha decorre da estratégia de compatibilizar a participação no evento suíço com o projeto “O agir democrático no âmbito dos direitos culturais”, planejado para ser desenvolvido nos anos de 2022/2023, pelo Grupo brasileiro mencionado.
Antes de apresentar o artigo escolhido para o debate, é importante partilhar uma panorâmica da Declaração adjetivada com o nome da cidade onde foi adotada em 7 de maio de 2007, portanto, há exatos 15 anos da data em que estas linhas estão sendo escritas. Não obstante ser de responsabilidade do “Grupo de Friburgo”, então coordenado pelo Professor Patrice Meyer-Bisch, a Declaração foi adotada “por uma assembleia reunida para esse efeito, composta de professores universitários oriundos de diversas disciplinas, de membros de ONGs e de profissionais do campo dos direitos culturais, com o apoio de aproximadamente sessenta personalidades de diferentes origens”. (1)
O documento é composto de nove “Considerandos” (justificativas) que basicamente reafirmam os direitos humanos, e de doze artigos, assim epigrafados: 1º Princípios fundamentais; 2º Definições; 3º Identidade e patrimônio culturais; 4º Referências às comunidades culturais; 5º Acesso e participação à vida cultural; 6º Educação e formação; 7º Informação e comunicação; 8º Cooperação cultural; 9º Princípios de administração democrática; 10º Inserção na economia; 11º Responsabilidade dos atores públicos e 12º Responsabilidade das Organizações internacionais.
Especificamente, o Artigo 9º afirma que os ditos princípios de administração democrática devem balizar não apenas – como tradicionalmente é feito - as ações dos entes públicos (os Estados e suas instituições), mas também a sociedade civil (representada pelas Organizações não governamentais e outras associações e instituições sem fim lucrativo), e até mesmo pelo setor privado (compreendido mais restritamente pelas empresas). Porém, o documento vai ainda mais longe, ao consignar que “o respeito, a proteção e a implementação dos direitos enunciados na presente Declaração implicam obrigações para toda pessoa e toda coletividade”.
Todos esses responsáveis pelos métodos e meios democráticos, favoráveis aos direitos culturais, devem tomar iniciativas para viabilizar a oitiva e participação de todos, assegurar informação adequada, formar pessoal e sensibilizar o público, bem como “identificar e ter em consideração a dimensão cultural de todos os direitos humanos”, sempre com especial atenção a quem esteja em situação de inferioridade, seja política, econômica ou social.
Nota-se, assim, que a Declaração de Friburgo é de uma ousadia triplicada, quando comparada com as suas congêneres tradicionais, a exemplo da Magna Carta (1215) e até mesmo da Declaração Francesa (1789), que têm por destinatário exclusivo o Estado ou quem lhe faz as vezes. Ocorre que, no caso da Declaração de 2007, para transformar em obrigatórios os preceitos destinados também aos setores da sociedade civil e da iniciativa privada, corre-se o risco de fortalecer ainda mais o Estado, pois seria necessário criar normas e sanções universais, em face dos previsíveis descumprimentos, o que é uma prerrogativa da esfera pública, em homenagem ao princípio da legalidade, segundo o qual somente a lei pode criar obrigações e limitar direitos.
Todavia, não parece ser esse o intento dos redatores originários, que certamente objetivavam horizontalizar a responsabilidade pelos direitos humanos, em geral, e pelos direitos culturais, especificamente; daí emanar do documento um forte componente ético, que não se materializa espontaneamente, razão justificadora do apelo por investimentos em educação e inclusão social, por serem fatores determinantes para que os mais importantes valores humanos se firmem nas consciências, pois como diria Rousseau, outro suíço de contribuições humanísticas universais e indeléveis, “o primeiro dever do homem é estudar seus deveres”, e somente quando isso não se concretiza ou falha, com certa e sutil ironia conclui, na linguagem de seu tempo, que “o medo da lei nos torna justos”. (2)
É muito desafiador, porém, extremamente necessário que tenhamos bons pretextos para nos reunirmos e rediscutirmos ideias para os direitos culturais, tendo como condicionante inegociável a democracia, começando pelo cuidado de adotarmos essa prática na própria construção ou declaração de direitos.
Humberto Cunha Filho – Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP)
1.MEYER-BISCH, Patrice; BIDAULT, Mylène. Afirmar os Direitos Culturais: comentários à Declaração de Friburgo. São Paulo: Iluminuras, 2014, p. 13.
2.ROUSSEAU, Jean-Jacques. Jean-Jacques Rousseau: Oeuvres complètes - 93 titres (Nouvelle édition enrichie) (French Edition) . Arvensa Éditions. Edição do Kindle.
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