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Controle de convencionalidade, Estado e (in)efetividade dos direitos culturais


Último quadro de Van Gogh, 'Raízes de Árvore'

A partir da intensificação das relações interestatais, especialmente do período posterior à Segunda Guerra Mundial, promoveu-se uma maior interação entre o sistema jurídico nacional e o internacional, favorecendo um movimento de universalização e fortalecimento dos direitos humanos, veiculados por meio de tratados (convenções) produzidos na esfera transnacional, preferencialmente em organismos cuja funcionalidade pressupõe a participação dos Estados; a título de exemplos, para citar alguns dos quais o Brasil é Estado Membro, temos a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA).


Assim, desenvolve-se o mecanismo do controle de convencionalidade [1], enquanto instrumento de interação entre as normas internas e os tratados internacionais de direitos humanos para proporcionar maior efetividade aos direitos fundamentais – e humanos – por meio de uma operação de validação das normas nacionais, agora tendo como parâmetro de controle não apenas a Constituição Federal (controle de constitucionalidade), mas também os referidos tratados de direitos humanos.


Nesse contexto, a evolução da aplicabilidade do controle de convencionalidade vai além da compatibilização das normas nacionais, mas também é importante instrumento para análise e controle dos atos dos poderes públicos, tanto do Judiciário, quanto do Executivo e do Legislativo.


Ao propor a ampliação da discussão em torno das normas de direitos humanos (e fundamentais), a aplicação do controle de convencionalidade evidencia o debate sobre a forma como o Estado brasileiro se posiciona frente aos conflitos neste campo e a sua capacidade de cumprir com as obrigações acordadas nas convenções internacionais, de modo que a legitimidade requerida dos agentes públicos deve estar de acordo com os princípios fundamentais do Estado Democrático brasileiro previstos, especialmente, nos artigos 1º a 4º da Constituição vigente, entre eles o de pautar as suas decisões com base na “prevalência dos direitos humanos”.


Desse modo, aqui se recorda que o controle de convencionalidade deve ser aplicado a qualquer decisão dos agentes estatais, não se restringindo apenas ao âmbito jurídico, apesar da prevalência deste. De modo que, decisões administrativas que gerem violações, mesmo que supostamente em nome de direitos humanos, devem ser questionadas.

Caso emblemático que revela na prática as intenções do Estado brasileiro tem sido o relativo à construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, tratado pelo Estado brasileiro como primordial para o desenvolvimento econômico do país por conta da energia que potencialmente tem capacidade de gerar, mas cuja implementação simultaneamente tem causado violações aos direitos originários indígenas às terras que habitam e ao direito de consulta, à preservação do patrimônio cultural brasileiro, todos previstos constitucionalmente e nos tratados de direitos humanos em vigor no Brasil, inclusive a Convenção 169 da OIT.


Nesse caso, decisões administrativas e judiciais, se parametrizadas pelos tratados internacionais de direitos humanos vigentes no país, poderiam conduzir a soluções de maior eficácia daquelas deliberações, tanto em matéria de direitos humanos quanto em questões econômicas, pois, nesse caso, o modelo econômico colonialista e neoliberal que reduz tudo a números, leia-se Produto Interno Bruto (PIB), poderia ser suplantado ou integrado a indicadores centrados na pessoa humana, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ou outros ligados à cultura que permitiriam também abordar o desenvolvimento pessoal e coletivo sob a perspectiva da inclusão cultural.


O Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga no Brasil a Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, decreta em seu artigo 1º que a Convenção “deverá ser executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém”, tornando-se crucial referir a que este documento internacional entende sobre a questão do desenvolvimento indígena, pois esta mesma concepção deve ser harmonicamente aplicada no âmbito local. Assim, dispõe o artigo 7º da Convenção 169:


I. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.


Dessa forma, cabe aos indígenas escolher o seu processo de desenvolvimento que certamente considera seus valores culturais, inclusive o “bem-estar espiritual”. Além disso, sabendo que as decisões sobre o desenvolvimento nacional são interdependentes, a Convenção alerta para a participação dos povos indígenas nos programas de desenvolvimento nacional e regional para além dos processos de elaboração, implementação e controle de políticas públicas com as quais poderão ser afetados, cabendo aos governos também considerar possíveis impactos nas dimensões social, espiritual, cultural e sobre o meio ambiente das comunidades.


Nesse contexto, ao levar em consideração para a solução do conflito o mecanismo do controle de convencionalidade, no caso específico referido à questão (Belo Monte) que envolve desenvolvimento, megaprojeto estrutural e direito indígena, as autoridades públicas, ao utilizar a metodologia dialógica para interpretar e aplicar o direito em questão deve considerar, além da Carta Magna, a aplicação de normas dos sistemas internacionais (regional e global) em vigor no Brasil, entre elas: a Declaração Interamericana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial; a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e a Convenção da Diversidade Biológica, para citar algumas mais relevantes.


No caso, compreende-se que promover a diversidade e a liberdade de expressões culturais não enfraquece o desenvolvimento do Estado, assim como levar em consideração os direitos culturais das comunidades envolvidas em questões de alocação de recursos públicos. Na verdade, o objetivo do referido controle de convencionalidade é o fortalecimento das ações jurídicas e políticas em prol dos direitos humanos e fundamentais, aqui, em foco, também os direitos culturais.


Os movimentos de lutas sociais e institucionais em favor da concretização de direitos humanos são ações importantes para a garantia da dignidade da vida humana e da não-humana. No entanto, as raízes da baixa efetividade, ou mesmo da inefetividade, de tais direitos estão na estrutura do próprio Estado, enquanto perpetuador de desigualdades (entre os 99% da população) e de privilégios (para 1%, quando muito).


Os direitos humanos são pontos de partida, mas é preciso ir além para mudar o Estado e a sociedade; e, entre muitas possibilidades, também é factível a disseminação de uma cultura de paz e responsabilidade mútua para que uma autêntica justiça social e ambiental seja concretizada neste mundo.


Marcus Pinto Aguiar, Mediador de conflitos (NUPEMEC/TJ-CE), Advogado, Doutor em Direito Constitucional com pós-doutorado pela UNB/FLACSO Brasil. Professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do Mestrado em Direito da UFERSA, membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Notas


[1] Para maior compreensão do tema, conferir em AGUIAR, Marcus Pinto. Acesso à Justiça nos Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos Humanos. 2ª ed. São Paulo: Lumen Juris, 2017, p.98.



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