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Ce N'est Pas um artigo de opinião

Atualizado: 5 de ago. de 2020

“Que não é o que não pode ser que

[...]

(O que – Titãs/Letra de Arnaldo Antunes)


Dr. Rodrigo Vieira

(Investigador Visitante em Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UFERSA/Coordenador do DiGiCULT – Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da UFERSA)

Texto concluído em: 05.06.2020



Por que não escrever sobre as preocupações do governo português e da União Europeia em como compatibilizar os apps de rastreamento de contatos no enfrentamento à COVID-19 com a proteção de dados pessoais? Fiquei matutando a pergunta até entrar numa live com o professor Humberto Cunha para conversamos sobre o Projeto de Lei de Emergência Cultural (apelidada de Lei Aldir Blanc) que foi aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado para salvaguardar os segmentos culturais dos efeitos da pandemia. À mesa o encarte do Público sobre as promessas não cumpridas do Ministério da Cultura de Portugal e o protesto dos artistas e técnicos em espetáculos pelo país.


Conversando com um amigo investigador disse: “Acho que o próximo artigo sai sobre esse paradoxo da centralidade da cultura e a precariedade do setor”.


No entanto, na mesma semana, em outro diálogo online organizado pelo Instituto Iracema, sobre direitos autorais e internet com a advogada Cecília Rabelo, presidenta do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), indaguei a mim mesmo se não daria um caldo dedicar algumas palavras ao questionamento se as lives se configurariam como execução pública e, portanto, poderia o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais (ECAD) cobrar por shows e apresentações ao vivo. Um velho amigo diria: “Massa, massa!”.


Já que perdi o prazo do concurso de contos de quarentena, poderia surpreender a todos e terminar minha estória distópica inacabada sobre a experiência do desconfinamento e me lançar de fato na vida literária. Minha companheira aprovou o roteiro. Como diria outro grande amigo: “Disruptivo!”.


Como se não bastassem as tristes notícias sobre infecções e mortes, o racismo estrutural segue fazendo suas vítimas nas Américas, apesar do afetamento mascarado da branquitude universalizando os atos de violência policial e estatal para esconder seus preconceitos e do ocultamento dos pendores da história da colonização que repousam ainda sobre nós. A morte de George Floyd, após o sufocamento cometido por um policial branco em seu pescoço, gravado e difundido em toda a internet, me fez pensar que poderia tentar resgatar a ideia de um escrito sobre o racismo e o ocidente, a partir de uma relação entre o revolucionário 25 de Abril dos portugueses e a representatividade desta data como também uma conquista dos movimentos de libertação anticolonialistas em África. Outro grande amigo me fez lembrar como um lugar aparentemente lúdico e divertido para crianças, como Portugal dos Pequeninos em Coimbra, ainda mantém artefatos e bens culturais da espoliação colonizadora sem problematizar minimamente que traz em si, em sua organização e arquitetura, elementos de enaltecimento do heroísmo colonizador difundidos na ideologia da identidade singular e única defendida pelo período salazarista.


Não estava na hora de reviver as minhas notas sobre a proteção do patrimônio cultural no Brasil? Talvez falar um tanto sobre a noção restritiva e invisibilizadora de patrimônio histórico-artístico do Estado Novo que permeou a República, mesmo com iniciativas em contrário, até pelo menos a Constituição Federal de 1988? Não é importante tratar sobre tombamento de terreiros e territórios quilombolas e do desmonte da administração pública da cultura no governo federal, após a divulgação de reunião de ministros na qual o da Educação desfere todo seu ódio à diferença, e o presidente da Fundação Palmares continua a protagonizar episódios nos quais nega o racismo? Não seria igualmente relevante dedicar um tempo para a ausência de políticas culturais do atual governo como uma política cultural?


Quem sabe poderia retornar a analisar constitucionalmente, sob a ótica do direito à manifestação e ao protesto, projetos de lei que tentam criminalizar movimentos antifascistas que recentemente se insurgiram contra a conivência e a omissão ocidental com grupos fascistas que pregam, além do racismo, o ultranacionalismo autoritário. Dá para ser tolerante em democracias com o fascismo? Creio que não.


Enquanto estimulo meus orientandos e orientandas a publicarem em revistas qualificadas, a se engajarem nas linhas do grupo que conduzo e comemoro a minha participação em livro sobre Direito e COVID-19, recebo uma mensagem comunicando a destruição da escultura “Mulher Rendeira” do pernambucano José Corbiniano Lins, que se situava no Banco do Brasil da Praça do Carmo, na minha terra natal Fortaleza. Um ótimo caso para alertar a todos sobre o descaso com nosso patrimônio e a necessidade da regulação das obras de artes em espaços públicos.


Repentinamente, diante de situação particular que ameaça um exercício legal e regular de um direito, mobilizo as reflexões para um desejo antigo de tratar um pouco da autonomia universitária e de sua defesa diante da atual incerteza sobre seu destino. Imediatamente, vejo suspendido esse projeto até o prazo de envio deste artigo para o IBDCult, quando sou entrevistado por um jornal querendo saber mais sobre fake news, responsabilização de plataformas de compartilhamento de conteúdo por danos gerados pelos usuários, liberdade de expressão e discurso do ódio. Quem sabe talvez, vamos de combate à desinformação.


No dia seguinte à divulgação da entrevista, uma jornalista de uma agência de verificação de fatos pede que grave um podcast sobre o PL 2630/2020 que tramita no Senado, cujo propósito é, nada mais, nada menos, coibir a disseminação da desinformação, alterando de um dia pro outro, sem discussão e participação popular, e no meio de uma pandemia, todo o regime de responsabilização de provedores de aplicação presente no Marco Civil da Internet e afetando disposições da nossa Lei Geral de Proteção de Dados sem sequer modificar diretamente seus textos. Sem mencionar que a proposta denominada “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” merece algumas indagações diante dos direitos fundamentais de acesso à informação, de liberdade de expressão, de comunicação, de privacidade e de proteção de dados. É mais recente, está mais fresco, posso seguir por este caminho.


Diante do bombardeamento de notícias e de tantas incitações diretas e subliminares, sentei-me ao sofá e olhei fixamente para frente. Em vez da paisagem fora da janela, via as ideias num caleidoscópio psicodélico colorido enquanto ao fundo em minha mente se repetia incessantemente "The Candy Man", música tema da Fantástica Fábrica de Chocolates.


Pensei, pensei, pensei. Cansaço.


Como o crescimento exponencial da curva epidêmica do novo corona vírus em locais que não seguem as orientações de prevenção dos órgãos sanitários, a pandemia, em vez de desacelerar os processos de exacerbação da positividade (tóxica), potencializou aquilo que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han chamou de violência neuronal. A matriz da sociedade do desempenho encontra tradução em expressões como do it yourself; yes, you can; self-made man, reproduzidas por coachs e blogueirinh@s à exaustão, sob o pretexto de uma liberdade ilusória de autorrealização que acarreta não apenas sofrimentos individuais psíquicos, mas a solidificação de sujeitos obedientes à disciplina contemporânea das fórmulas de sucesso e eficiência que nos esgotam. Não sei de fato onde isso se encaixa numa perspectiva do bem-viver dissociada da hiperatividade e do hiperprodutivismo. De que serve um senhor de si narcísico autoexplorado?


A produção do pensamento, o trabalho intelectual, as criações imateriais requerem dispêndio de tempo, maturação das informações e do conhecimento, uma pitada ou uma dose de silêncio, na maior parte das vezes imersão nas realidades e, ao fim, a síntese de discussões, diálogos e escutas. É um processo transformador, não destrutivo. Hoje, compreendo melhor Bartleby, meu anti-herói da contemporaneidade, com sua resposta libertadora e contra a corrente quando lhe solicitavam algo: “I would prefer not to" (“Eu preferia não fazê-lo.”).


Por aqui, sigo nesse cansaço frenético tentando elaborar o que efetivamente se passa neste período de crise, querendo e desejoso de uma “rede preguiçosa para deitar”, almejando o verso manguebeat de Chico Science e Nação Zumbi, afinal “uma cerveja antes do almoço é muito bom, pra ficar pensando melhor”.



Imagem: "Bartleby the Scrivener" (2012) by Bill Bragg. Illustration for the Folio Society edition of "The Complete Shorter Fiction" (2012) by Herman Melville.

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