“Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo. [...]”
(Livros – Caetano Veloso)
Dr. Rodrigo Vieira
(Investigador Visitante em Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da UFERSA/Coordenador do DiGiCULT – Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da UFERSA)
Texto concluído em: 30.04.2020
O silêncio das cidades lusitanas durante a quarentena adquiriu algo de sobrenatural. É como se houvesse sobre o silêncio um novo peso, além do próprio silêncio. Nas paisagens das cidades, com suas vielas, galerias e lojas não se deixam ver traços da presença humana, ruidosa por definição. Nas antigas livrarias, as ausências reforçam a sensação de estranheza que nos impõe o tempo no qual vivemos. Antes, lugares de sussurros e admiração curiosa, as livrarias se transformaram no espaço de outros tantos silêncios. Apesar das causas dessa quietude serem reais, biológicas, involuntárias, tornaram o futuro desses lugares de memória e saber incerto.
No Chiado lisboeta, no Arco de Almedina na Baixa de Coimbra, no interior neogótico da Lello no Porto, ou em qualquer alfarrabista e pequena livraria do país, ainda não se pode demorar horas a folhear páginas, ler orelhas, caçar tesouros para coleções e ouvir indicações de leitura, desfrutar da arquitetura ou do ambiente de imaginário sugerido por esses lugares onde habitam os livros. A COVID-19 está a deixar esses ambientes desprovidos de vida e da curiosidade dos passantes, comprometendo a saúde econômica de um setor cujas rápidas mudanças dos modelos de negócio, em razão das novas tecnologias da informação, por si já ocasionavam algumas debilidades ou transformações abruptas.
Entre as várias receitas para sairmos ilesos da quarentena, com saúde mental e física, ou aproveitarmos o ócio obrigatório do isolamento social – para aquele/as que podem assim estar, e quando a casa não os/as cobra os hábitos do devido cuidado – estão infindáveis listas de leituras, ofertas de acesso gratuito a blogs, jornais, revistas, bases de dados (um paraíso para investigadores), bem como descontos na compra do bom e velho livro. A concorrência com o império do audiovisual e da imagem chega a ser desleal, como se essas técnicas prescindissem por completo dessa linguagem milenar guardiã da memória (da) escrita e dos meios pelos quais nos comunicamos. Muitas das tradições orais de diversas culturas foram preservadas por intermédio ou com apoio do livro, ainda que permaneçam (mais) vivas com a re-existência da transmissibilidade inter-geracional da fala. Por vezes, decretaram a morte do livro, mas, como observado no diálogo entre dois bibliófilos aficionados como o escritor Umberto Eco e o cineasta Jean-Claude Carrière, cuja atualidade pede revisitação, não contem com o seu fim. Ele não morrerá. Isso vale para a pandemia que enfrentamos.
Os livros já enfrentaram e sobreviveram ao fogo acidental ou criminoso, às fogueiras da Inquisição e dos regimes totalitários, ao Índex, à censura, aos fundamentalismos, às guerras, à efemeridade dos suportes, aos novos suportes como os adaptados para leitores digitais, ao esquecimento, à ignorância, à estupidez, às pragas, às pestes, aos cupins e às traças, às mudanças nos modelos de negócio do mercado editorial. A COVID-19 não é uma gripezinha, mas o livro escapará. Nem a pandemia nem os populismos das fake news estão a nos conduzir para um mundo distópico sem livros, ou a um semelhante ao retratado em Fahrenheit 451.
O tom profético dos verbos no futuro do presente enuncia muito menos de adivinhação do que a constatação da função histórica de preservação dos erros e acertos humanos que, ao contrário do personagem de Borges, Funes, que recordava todos os mínimos detalhes dos acontecimentos, nos deixa dormir de alguma maneira tranquilos. Os livros permitem distrair-nos do mundo sem que abandonemos por inteiro as recordações, sem a “condição de eterno prisioneiro” do memorioso, ao tempo que nossa criatividade é capaz de reinventá-los, criá-los indefinidamente, afinal, segundo a frase latina de Plínio proferida por Funes, “nada de lo que ha sido oído puede ser recordado con las mismas palabras”. Não se trata de confundir o livro com depósitos, repositórios ou com as nuvens que armazenam incontáveis dados em gygabites, mas de pensá-lo como uma ação de permanente narrativa do conhecimento ao imaginário humano, do que há de melhor ao pior na humanidade.
O que tem sido feito para assegurar sua permanência na vida cultural durante a pandemia?
As medidas de apoio governamental durante a pandemia permitem que os livros sejam postos em circulação com a sobrevivência das livrarias, principalmente, pequenas e médias que, além de sofrerem com o fechamento temporário de seus estabelecimentos, concorrem com empresas do mercado editorial que sequer possuem lojas físicas, ou, quando têm, imitam ou apenas intermediam as relações consumeristas virtuais. Seus negócios em termos de comércio eletrônico funcionam mais como hipermercados centrados exclusivamente na venda de mercadorias “qualquer coisa”, mero bem de consumo, expropriando o valor simbólico e experiencial dos livros e, quando não, instaurando um regime de vigilância sobre os leitores a partir da recolha de seus dados pessoais e gostos, alimentando as redes de publicidade e marketing direcionadas de seus patrocinadores e de sua cadeia econômica.
Aqui, alguns enclaves sobre os atuais desafios do livro e nossas relações com eles, antes de retornarmos a Portugal. O que se apresenta aparentemente a nós como vantagem e inerente à era digital e próprio da sociedade da informação, independentemente do suporte da obra, esconde as tecnopolíticas da vigilância orientadas ao hiperconsumismo incentivado pelo oligopólio das gigantes da internet (Amazon, Google, Facebook).
Já não se pode se esconder na casa da árvore, esparramar-se em uma sombra no parque, ou se bronzear na praia, deitar no sofá, sem que o grifo ou a busca de uma palavra em seu livro favorito no leitor digital venha acompanhado de uma notificação de um novo produto que algoritmos associaram como uma necessidade sua. Quem sabe um novo livro. O apontamento não é uma ode a tempos imemoriais ou áureos de culto e contemplação de alguma sacralidade do livro, mas uma observação que procura destacar o olhar menos ingênuo e celebrativo das tecnologias simplesmente por ser o que são, desconectadas dos seus usos sociais e econômicos. Contudo, essas indicações, esses alertas, nos colocam em contato com o que o mercado editorial deseja que consumamos, de fora ficam as editoras independentes com seus temas supostamente marginais e autores que não se tornaram ou não são celebridades.
No caso dos livros e dos bens culturais, há o perigo de projetos que os coloquem todos à disposição de um armazenamento centralizado (o Oráculo de Delfos Digital, a quem todos recorrem ou consultam), sob os auspícios e domínios de uma ou mais empresas. Ora, na história são fartos os exemplos sobre o risco da centralidade do conhecimento em uma instituição, classe, organização ou sob a tutela exclusiva do próprio Estado. Isso permitia escondê-los, selecioná-los, destruí-los ou apresentá-los de acordo com os interesses do poder. É suficiente lembrarmo-nos do romance de Umberto Eco O Nome da Rosa. Agora, a oferta do catálogo está “nas mãos” de robôs.
Por sorte, ou em verdade pelas mudanças constantes na atribuição de valor a partir das trocas, como pontua Appadurai, as coisas têm vida social intensa que se desviam das demandas dos fluxos mercantis. O valor cultural do livro é anterior; isso vale para sua atualização, ou seja, segundo Pierre Lévy, sua passagem para o virtual.
Nisso, arrisca-se dizer que, presumidamente, os portugueses se mantêm fiéis aos suportes analógicos do livro. De acordo com pesquisa realizada pela Picodi, empresa de gerenciamento de informações sobre descontos em produtos e serviços, houve, ao final dos penúltimo e último trimestres de 2019, um aumento no consumo de livros online pelos portugueses, apesar de sempre estar associado a outras compras e não ser o produto imediatamente buscado. Mais de 50% dos entrevistados pela empresa adquirem livros diretamente em livrarias, dos quais 80% em lojas e suporte físicos, apesar do crescente interesse por ebooks e audiobooks, bem como pelos ereaders, mas sempre de olho nos descontos nos preços a despeito de em sua maior parte achar os valores adequados.
Segundo essa estatística, quase metade dos portugueses compram livros por gostar de ler (48%), e outra fatia considerável (28%) para fins de estudo e trabalho. Portugal se encontra na média dos países que mais consomem livros no mundo. Para a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), é pouco provável que o digital substitua o livro impresso entre os portugueses. Mercados que até pouco tempo dominavam a cena do comércio de ebooks, como Estados Unidos e Reino Unido, no ano passado, mostraram um decréscimo significativo nas vendas.
Apesar da forte presença da prática da leitura em Portugal, o mercado livreiro tem sofrido com a quarentena. De acordo com a Growth for Knowledge (GFK), instituição de pesquisa que realiza auditorias no mercado de livros em Portugal anualmente, entre o pouco tempo antes do início da decretação do Estado de Emergência e o final de março deste ano, as livrarias portuguesas tiveram uma queda nas vendas de 65,8% em relação ao mesmo período do ano passado, o que representa uma perda de 1,6 milhões de euros num mês que movimentou em 2019 cerca de mais de 2,5 milhões de euros. Na semana que antecedeu o Dia Internacional do Livro e dos Direitos Autorais (dia 23 de abril), as vendas aumentaram um pouco, mas, de acordo com a agência GFK, houve uma perda de 76% tomando por base o período homologo do ano passado, retratando mais uma perda de 1,8 milhões de euros.
As maiores prejudicadas com a queda foram as livrarias, seguidas dos hipermercados. Entretanto, diferentemente desses, aquelas não têm outra fonte de receita que não livros. Ainda que o comércio de livros tenha continuado online, em Portugal ele simboliza uma pequena fatia do mercado. A suspensão drástica na distribuição e produção dos livros também afetou as editoras portuguesas, em grande parte pequenas, e as atividades de serviços gráficos atreladas à edição de obras.
Muitas livrarias aderiram, para não fecharem de vez, ao regime de lay-off, assim como parte considerável das empresas portuguesas. Mesmo podendo realizar vendas à porta, as maiores livrarias do país, FNAC e Bertrand, encerraram seu atendimento presencial ao público, continuando com o comércio eletrônico de livros.
Diante dessa situação, foi criada no início de abril, a ReLI – Rede de Livrarias Independentes, cuja carta nascedouro apresentou, ao governo português e ao Parlamento, pedidos de socorro emergenciais e estruturais para o setor. A reivindicação incluía: 1) o acesso à linha de financiamento e de crédito semelhante à garantida as demais empresas durante o Estado de Emergência para satisfação de obrigações junto aos fornecedores; 2) a consulta e participação dessas livrarias nos processos de aquisição de livros para equipamentos públicos como bibliotecas e escolas com a fixação de descontos mínimos; 3) apoios financeiros a fundo perdido para pagamento de alugueis a fim de evitar os despejos que já aconteciam por conta da especulação imobiliária; 4) instalação de novas livrarias em prédio públicos, ou daquelas que sofrerem despejo durante o período excepcional; 5) garantia de renda mínima aos trabalhadores via lay-off; 6) criação de uma plataforma na qual as livrarias da rede pudessem, a partir de um sistema de geolocalização, praticar vendas online; e 7) o tabelamento de preços de livros em virtude da prática de descontos das lojas virtuais contras as quais não conseguem concorrer.
Algumas dessas propostas já haviam sido ventiladas junto ao Ministério da Cultura (MC) pela APEL, também no início de abril, como linhas de créditos que engendrassem a paralisia de endividamentos e a revisão dos arrendamentos durante o Estado de Emergência. Acresce-se a essas reivindicações a redução no Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA) sobre os livros e a oferta de cheques-livro às famílias para aquisição de obras (funcionaria de maneira semelhante ao Vale-Cultura brasileiro).
Apesar de vozes europeias como a da Ministra da Cultura na Alemanha, Monika Grütters, afirmarem em alto e bom som que a cultura não é luxo, é bem essencial, a pandemia exige que se pense para os setores culturais medidas emergenciais, principalmente financeiras, não apenas como socorrer situações de desemprego e insolvência imediatas, mas, a médio prazo, no retorno do funcionamento de equipamentos culturais de uso e fruição coletiva como livrarias. Os hábitos culturais não se restringem e se resumem ao valor de troca de produtos criativos, tampouco os bens culturais podem ser mensurados apenas sob o viés econômico. O livro deveria integrar a cesta básica, as rendas básicas mínimas discutidas atualmente pelos países cujos trabalhadores se veem impelidos a parar, impedidos de exercer seus ofícios em razão da pandemia.
Borges atribuiu fixamente em seu conto o significado de pão dentre os incontáveis sentidos que as infindáveis linguagens de sua Babel imaginada poderiam designar a Biblioteca infinita. O ensaísta e crítico literário brasileiro Antonio Candido defendeu o direito à literatura como um direito inalienável, humano, pressuposto de uma sociedade justa.
As datas comemorativas, aparentemente efêmeras, têm no seu simbolismo, senão uma força normativa como a dos direitos humanos, uma pulsão ou potência de transformar exortações em atos. No dia em que se comemora o falecimento do criador de Quixote e suas lutas imaginárias, vãs e inglórias contra moinhos de vento, Miguel de Cervantes, assim como o marco da vida e da morte de Shakespeare, 23 de abril, Dia Internacional do Livro, como já dito, o Ministério da Cultura português anunciou medidas específicas de apoio ao setor livreiro em virtude dos efeitos deletérios da pandemia neste campo da economia da cultura.
Apesar de algumas medidas transversais de apoio à economia do pacote do governo português já se aplicassem ao setor, como as referentes à manutenção de empregos e solvência das empresas, o MC noticiou, em face da autonomia e das especificidades deste campo econômico, duas medidas adicionais a curto prazo para atenuar a situação de vulnerabilidade: a aquisição de livros das livrarias e editoras pelo Estado português e o estímulo financeiro à criação literária.
A Direção Geral do Livro, dos Arquivos e da Biblioteca (DGLAB), serviço central da administração direta do Estado português, coordenará um programa de aquisição de livros, a partir do catálogo de vendas de livrarias e editoras, para que sejam distribuídos, em colaboração com o Instituto Camões, entidade vinculada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, na Rede de Ensino de Português no Estrangeiro e na Rede de Centros Culturais. Essas redes têm por finalidade o ensino e a promoção da língua e da cultura portuguesas em países estrangeiros.
Ainda que não tenha especificado com precisão que critérios utilizará para definir pequenas editoras e livrarias, o MC adiantou que elas serão sua prioridade. Basta que comprovem que são empresas com o mínimo de dois anos de funcionamento no setor e possuam sede no território português. As obras que serão adquiridas, da ficção ao patrimônio cultural, têm de necessariamente ser de autoria de portugueses e escritas em português, do contrário não cumpririam o fim da sua distribuição nas redes lusitanas de cultura no exterior. A avaliação das propostas de editores e livreiros será realizada pela DGLAB e em função de regulamento. Cada livraria e editora receberá no máximo 5 mil euros.
Para tanto, haverá a suplementação do orçamento do Estado para 2020, no Programa de Apoio ao Desenvolvimento de Serviços das Bibliotecas Públicas (PADES), no valor de 400 mil euros. Atualmente, nesta rubrica consta a previsão orçamentária de 200 mil euros, ou seja, serão destinados este ano para aquisição de livros o valor global de 600 mil euros. Além das redes de cultura citadas, os livros irrigarão o sistema público de bibliotecas.
Apesar disso, a APEL, que possui mais de duzentos associados dentre editoras e livreiros, sendo as primeiras quase que a totalidade, em cálculo tomando por base os limites individuais e global do incentivo e os tipos de beneficiários do apoio, considerou o apoio financeiro anunciado pelo Ministério insuficiente diante das perdas estimadas em 30 milhões de euros. Seriam beneficiadas pelo apoio somente 80 empresas.
Além disso, o MC português modificou o calendário da abertura de concurso para bolsas de criação literária que, em regra, acontece em setembro ou outubro de cada ano. Haverá, portanto, a antecipação para maio, com previsão de apoio a dezoito projetos, doze semestrais e seis anuais, e a possibilidade do aumento dessas concessões no segundo semestre deste ano. A dotação para essa programação orçamentária é de 180 mil euros, cujo valor global corresponde a um suplemento de 45 mil euros a mais do que a previsão do ano passado. Todavia, esta política de estímulo à criação não veio acompanhada de uma correspondente à formação de leitores ou de estímulo à leitura.
Independentemente das medidas, com o fim do Estado de Emergência após este feriado do Dia do Trabalho, as lojas podem reabrir, mas não está claro quais precauções sanitárias devem adotar. Ainda assim, corre-se o risco de que livrarias tradicionais fechem, comprometendo a forma pela qual os portugueses comumente acessam os livros.
Emborcando o pressuposto de uma sentença de Borges, em seu conto A Biblioteca de Babel, basta que existamos para que seja possível que um livro exista. Porém, a co(n)fusão dessas existências não pode se ver ameaçada em sua essencialidade. Para tanto, medidas emergenciais, em termos de políticas culturais para o livro e seus templos guardiões, como livrarias e editoras insurgentes, são necessárias para reafirmar e nos rememorar sua importância e sua vitória contra o tempo. Se, como supõe o literato argentino, nosso universo é o conjunto de todos os livros existentes e possíveis, ainda que o ser humano seja este “imperfeito bibliotecário”, a COVID-19 não representa ainda nossa morte, essa “queda infinita” na qual o corpo se dissolve. Ao contrário, essa co(n)fusa coleção “perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta”.
Imagem - A Biblioteca de Babel de Borges pelo projeto Arquitectura de Cuento de Hadas, coordenado por Kate Bernheimer e Andrew Bernheimer.
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