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Apropriação Cultural: Nordestes versus Prada, um problema mal posto

Atualizado: 5 de ago. de 2020

No começo da semana, circularam severas críticas na internet sobre o lançamento de um calçado da marca Prada que remonta às sandálias de couro comercializadas, sobretudo, na região do Nordeste brasileiro.

A marca não foi acusada de plágio exatamente – como poderia acontecer, por exemplo, se tivesse copiado o design dos calçados do Mestre Expedito Seleiro, de Nova Olinda/CE, que além de ser considerado um tesouro humano vivo, é referenciado em desfiles da indústria da moda – mas, sim, de ter se apropriado de uma forma de expressão eminentemente nordestina.


Dentre as piadas e memes sobre o preço da sandália, no valor de quase R$ 4 mil, despontou crítica séria sobre uma possível apropriação cultural do povo nordestino.


Mas o uso da expressão “povo nordestino” merece uma reflexão. Em um contraditório, seria possível atribuir certas tradições ao povo sudestino? Ou isso soa estranho para você, leitor?

Durval Muniz já escreveu sobre isso, demonstrando de maneira impressionante o contexto datado e reacionário dessa construção imaginária, de onde surgiu, na sociedade brasileira do século passado, o povo nordestino.


A nordestinidade, portanto, existe somente enquanto performance. Não devemos essencializar as identidades culturais, que são fluidas e dinâmicas.


Do ponto de vista da teoria do patrimônio cultural, é um erro atribuir autenticidade aos bens culturais de natureza imaterial. Esse caminho é cheio de armadilhas. É muito comum, por exemplo, a distinção maniqueísta entre uma manifestação cultural raiz – samba de raiz, forró de raiz, sertanejo raiz, vaquejada de apartação – com o objetivo de diferenciá-la de outras manifestações inautênticas e impuras – pagode, forró eletrônico, sertanejo universitário, vaquejada desportiva. Isso só faz sentido na disputa política e estética.


Os bens de natureza imaterial são dinâmicos e mutáveis. O jeito que se samba hoje não é o mesmo jeito que sambava há cem anos.


Para entender de forma mais clara, vale o chiste: cultura de raiz só a mandioca; essa, sim, é uma verdadeira cultura de raiz.


Ainda sobre a autenticidade, é muito perigoso afirmar que tal elemento cultural é exclusiva e autenticamente de uma determinada comunidade. Até pode ser, mas é muito arriscado cravar.


O “autêntico” trio de forró pé-de-serra (que hoje se sabe foi inventado pelo genial Gonzagão) é um bom exemplo para se pensar esses elementos que acreditamos ser uma verdadeira expressão da cultura local.


A sanfona, é bom lembrar, não é um instrumento musical autóctone. É europeu. Foi introduzido aqui como diversas outras expressões culturais europeias. Agora, leitor, imagine qual não foi o impacto quando esse instrumento chegou pela primeira vez no sertão, criando culturas híbridas, singulares, como o forró, seja lá qual for a sua matriz.


Da mesma forma, penso com relação à sandália de couro da Prada: quem disse que ela é uma apropriação de uma autêntica e exclusiva expressão cultural do povo nordestino?


Acredito que essa tensão pela propriedade das sandálias de couro, como disse Lúcio Costa ao analisar conflitos do patrimônio material, é um problema mal posto.



Mário Pragmácio

Professor do Departamento de Arte da UFF

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