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A liberdade de expressão no Estado Democrático de Direito

Imagem: Pixabay

Em 1985, no disco “Sessão da Tarde”, Leo Jaime lançou, através do selo Epic Records, a música “Solange”, composição de sua autoria e que é uma obra derivada da música “So Lonely”, da banda inglesa The Police. É um rock dançante ao melhor estilo anos 80.

O título faz referência à Solange Hernandes, temida censora que dirigiu a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) da Polícia Federal, entre 1981 e 1984, trazendo os seguintes versos: “eu tinha tanto para dizer/metade eu tive que esquecer/e quando eu tento escrever/seu nome vem me interromper/[...]eu já não posso nem cantar/meus dentes rangem por você”. [1]


Principalmente para os mais jovens, a censura pode parecer um fantasma, meio distante, obscuro e fantasioso. Não é raro vê-la invocada na disputa política contemporânea, esvaziando, inclusive, a sua carga semântica. O tema, porém, deve ser pautado por um rigor técnico que dê conta do entendimento jurídico sobre o assunto e, claro, de sua historicidade.

A censura fazia parte do aparato estatal brasileiro e havia concurso público para o cargo de censor. Solange Hernandes, falecida em 2013 e eternizada na referida versão de Leo Jaime, era um grande exemplo daqueles que exerceram essa carreira pública até o final da década de 80.


A Constituição Federal de 1988 [2] rompeu com essa prática oficial do Estado, vedando explicitamente a censura. Em 30 de junho de 1998, o plenário do Senado aprovou, em regime de urgência, o projeto que extinguia o cargo de censor federal, sendo os mesmos enquadrados na função de perito federal ou delegado da Polícia Federal no período de redemocratização do país [3].


Mesmo com essa proibição, não é raro encontrar, atualmente, vestígios velados da censura em atos jurídico-burocráticos que aparentam ser legais, porém violam frontalmente os direitos culturais, como aconteceu no caso “filtros da Ancine”, em 2019 (ADPF 614). [4]

Vale dizer que a Constituição Federal de 1988 reafirmou muitos dos direitos culturais suprimidos na época da ditadura militar, a exemplo dos chamados direitos de liberdade. A liberdade de expressão é, portanto, garantida constitucionalmente, mas, destaque-se, ela não é ilimitada.


No Brasil, há diversas estacas que cercam esse direito cultural. Apesar de não existir uma hierarquia entre os direitos fundamentais, a jurisprudência brasileira vem entendendo que, se a liberdade de expressão se chocar com outro direito fundamental, ela deve assumir um caráter preferencial. Mas isso não quer dizer, repita-se, que a liberdade de expressão possa ser exercida de forma ilimitada, não podendo, por exemplo, ferir a dignidade da pessoa humana.


Nos Estados Unidos por outro lado, a liberdade de expressão assume outra perspectiva, pois é possível dizer, para fins didáticos, que eles são (praticamente ou quase) ilimitados.

É possível até mesmo marchar-se com a organização terrorista Ku Klux Klan e manifestar um discurso de ódio (hate speech). Essa linha norte-americana que pode soar perversa, segue uma tradição liberal em que o discurso de ódio se combate com mais discurso. Porém, trata-se de uma linha tênue com consequências imprevisíveis.


Quem assistiu ao filme “Infiltrado na Klan” de Spike Lee (2018) observou, na cena final, nos olhos dos supremacistas brancos de Charlottesville, o que isso significa e qual os resultados desse caminho.


A liberdade de expressão é um direito fundamental e deve, sim, ser garantida, mas sempre em consonância com os limites impostos pelo Estado Democrático de Direito. Nem toda limitação ao exercício desse direito é, portanto, censura do ponto de vista técnico-jurídico.


Mário Pragmácio, Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC–Rio), Professor do Departamento de Artes e da Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da UFF e Conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Notas

[1] http://leo-jaime.musicas.mus.br/letras/69781/

[4] https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1190344787/inteiro-teor-1190344792

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