Proibições e ativismo em época de Festa Junina
As festas juninas vão dando um até breve, como um arraiá de chapéus de palha erguidos se despedindo do público, após dois anos de incertezas pandêmicas. Alavantús, anarriês, balancês, “olha a cobra” (ou outras jocosidades com figuras políticas), “formar a quadrilha”, aluá, pratinhos típicos gostosos e muitas bandeirinhas coloridas amenizaram a falta que faz esses e outros festejos populares na programação cultural existencial do brasileiro. Mas nem o bendito São João do carneirinho consegue pular fogueiras – aparentemente jurídicas – incólume ou só a título de celebração.
E, se bem alto escutamos animados Luiz Gonzaga cantando que “A fogueira está queimando... o forró já começou...” para dar o pontapé ao arrasta-pé, talvez esses versos adquiram outros significados para algumas instituições estatais que, em nome da autenticidade das expressões populares (selo raiz de certificação e qualidade) ou de outros valores sociais (“moral e bons costumes”, segurança, saúde, entre outros), muitas vezes protagonizam batalhas legislativas e judiciais proibicionistas ou restritivistas de controle de celebrações populares como os festejos juninos – que, diga-se de passagem, são celebrados por religiosos e pagãos em outros pontos do mundo, de diferentes formas, seja comendo sardinha com pão em Portugal ou com grandes fogueiras e guirlandas floridas na cabeça anunciando o verão nos lagos na Finlândia.
As festas juninas são de causos, mas também de casos nos quais há a tentativa de disciplinamento das comemorações pela legislação administrativa, muito embora, em tese, a liberdade de expressão cultural e artística de índole constitucional seja a regra.
De outro modo, há os ativismos judiciais essencialistas das manifestações culturais ou os que pretendem alocar recursos dirigidos para a cultura popular em outras áreas consideradas mais prementes ou relevantes pelos defensores de cancelamentos das festas públicas de São João. Essa última circunstância, vez ou outra, retorna ao foco das notícias, como o estopim ocasionado pelo debate sobre a utilização das leis de incentivo, como a Rouanet, ou do instrumento de contratação direta via inexigibilidade de licitação para contratação de artistas pelo Poder Público para esses festejos.
Mais além, situações de calamidade pública, como enchentes, sem mencionar a própria Covid-19, após um biênio sem São João, motivaram ações judiciais e cancelamentos administrativos dos festejos sem avaliações mais profundas e impactos em certas localidades nas quais esse período gera retorno econômico para os habitantes e organizadores que se beneficiam do turismo e das festas em torno da cultura popular, reacendendo também antigos sensos comuns sobre o difícil debate da alocação do orçamento e garantia de direitos fundamentais, atribuindo à cultura popular a figura de grande vilão diante de problemas estruturais dos quais ela também é vítima.
Recentemente, nem as tradicionais fogueiras escaparam. Na Paraíba, por exemplo, desde 2020 há uma lei que proíbe o acendimento das fogueiras nos espaços urbanos do Estado. O fundamento, no entanto, era o auge da pandemia; mas ainda este ano seguiram sendo proibidas. É certo que a brincadeira com fogo é perigosa, requer cuidados e segurança, tanto para adultos, crianças e animais, quanto para zonas de proteção ambiental e urbana. Mas por que proibir em vez de orientar ou recomendar ?
Ultimamente, como observamos no curso do carnaval – que teve, mas não teve, a depender de sua classe social – houve uma série de aplicações de normas restritivas da festa para dizer o que era ou não possível pelos participantes e brincantes, cujo descumprimento ensejava sanções e multas. Muitas vezes, sob valores e resguardos sociais importantes das boas intenções, se justificam as piores limitações que se acercam de grupos que não querem as festas ou de gestores que não querem ter obrigações de organizá-las no espaço público e promovê-las.
Seguindo semelhante orientação da lei paraibana, o município baiano de Lajes, no Centro-Sul da Bahia, também proibiu a queima de fogueiras por decreto municipal. O motivo seria o de proteger a pavimentação asfáltica de quatro quilômetros das ruas da cidade. O patrimônio cultural popular é tão irrelevante assim que até asfalto é justificativa para impedi-lo?
Por iniciativa da Comissão Especial de Cultura e Entretenimento, a OAB-BA ingressou com Ação Civil Pública contra a proibição executiva, vindo a obter tutela de urgência da 4ª Vara Federal Cível da Justiça Federal para assegurar e garantir que um dos maiores símbolos das festas juninas fosse aceso. [1]
À primeira vista, essa desproporcionalidade do Poder Público pode parecer novidade quando estamos tratando de manifestações culturais tradicionais, mas há vários exemplos anteriores envolvendo festejos e suas características que já ocuparam os tribunais.
O Ministério Público na Bahia, tanto o estadual quanto a Procuradoria Regional do Trabalho, protagonizou iniciativas em nome da defesa da manutenção de tradições em festa populares como o carnaval e as festas juninas, com base no princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, que, embora não tratassem de patrimônio cultural imaterial declarado formalmente, integram o universo simbólico e as práticas lúdicas de parte significativa da população brasileira. As ações visavam a conservação de características de aspectos relacionados às festividades, mas não encontraram ressonância no controle judicial e foram objeto de resistência e crítica por parte dos brincantes.
Em 2008, sob as alegativas de descaracterização de tradição cultural e violação do patrimônio cultural, o Ministério Público Estadual da Bahia ingressou com ação civil pública contra a o município de Salvador, a empresa municipal de turismo EMTURSA, o Conselho Municipal do Carnaval e a Federação de Entidades Carnavalescas da Bahia para anular a eleição de um Rei Momo magro para o desfile do carnaval de 2008, realizada pela Federação dos Clubes Carnavalescos da Bahia, atendendo pedido da Associação dos Gordos e Obesos de Salvador. Para o Parquet somente a lei seria instrumento legítimo de alteração da escolha momina. [2]
A magistrada da 5ª Vara da Fazenda Pública do Estado da Bahia determinou então que o concurso fosse anulado, acolhendo a justificativa do Ministério Público de que a ação resguardava bem de valor histórico e artístico, portanto a tradição cultural deveria permanecer igual aos moldes que historicamente, há cerca de cem anos, vinha sendo praticada.
Outro fundamento no qual a magistrada se assentou foi a da razoabilidade da ação afirmativa (discrímen positivo) para a defesa e reconhecimento de grupo vulnerável e objeto de discriminação, as pessoas com sobrepeso, contra a padronização social estética da magreza. Por essas razões, a Federação seria obrigada a realizar um novo concurso às vésperas do carnaval.
Em sede de recurso, no Tribunal de Justiça da Bahia, a Federação dos Clubes Carnavalescos da Bahia conseguiu reverter a decisão da magistrada. O Desembargador não adentrou no mérito sobre a descaracterização da tradição, mas se preocupou muito mais com questões associadas à imagem do Estado, tendo em vista que o caso fora tratado nacionalmente como um conflito de menor importância ou gerador de anedotas e constrangimentos. [3]
Muito embora se questione este tipo de intervenção judicial em uma expressão da cultura popular, a decisão de segunda instância, que restabeleceu a escolha anterior, não se atém à percepção da relevância e dos perigos da judicialização do patrimônio cultural imaterial, tampouco se vale dos direitos culturais ou dos princípios dos bens culturais imateriais para pôr termo ao conflito. Ao contrário, recorre ao argumento formal da inexistência de regulamento válido e eficaz que obrigasse a Federação a eleger um Rei Momo gordo e ao fortalecimento do direito de propriedade já que a marca nominativa “Rei Momo de Salvador” pertencia à Federação.
Nem a lei oriunda do Legislativo, segundo a visão dos promotores, teria o condão de intervir em mudanças de práticas e características das festas populares ou do patrimônio imaterial.
Em primeiro lugar, se tal norma existisse, se apoiaria em dirigismo cultural do Estado, violando o princípio constitucional dos direitos culturais da atuação estatal como suporte logístico; se apresentaria inconstitucionalmente como definidora da expressão ou da manifestação, incorrendo até mesmo em censura e retorno ao critério aristocrático de autenticidade na valoração dos bens culturais imateriais.
Em segundo lugar, as expressões e manifestações da cultura popular são concretizações do direito à liberdade cultural, cujos limites e restrições são ancorados em outros direitos e garantias fundamentais insertos na Constituição Federal de 1988, por ela reconhecidos ou adotados. Por fim, dentro da própria definição de patrimônio cultural imaterial constante na Convenção de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003, essas práticas são passíveis de modificações e recriações oriundas das comunidades e grupos de participantes, no presente caso, os brincantes do carnaval e os envolvidos na sua organização em Salvador, e, além disso, a eleição de um rei momo distinto, sob outro parâmetro que não o da tradição, não ameaçou a continuidade histórica do desfile e da festa. É certo, neste último tópico, que a participação popular, em regime democrático, é condição determinante para aferição da legitimidade da mutabilidade da expressão ou da manifestação cultural em questão.
Em 2012, sob o argumento da segurança dos brincantes, atendendo solicitação do Ministério Público da Paraíba, magistrada da Comarca de Queimadas proibiu o uso das tradicionais máscaras de papangus durante o período carnavalesco, em virtude da sua utilização por criminosos na realização das festas para cometimento de graves transgressões como estupros e homicídios [4]. Este tipo de decisão tem sido recorrente e interfere diretamente no desenvolvimento, na organização, e na prática de festividades populares, expressões intangíveis da cultura brasileira.
Já a Procuradoria Regional do Trabalho da 5ª região, em 2009 [5], ingressou com ação cautelar preparatória contra empresa organizadora de eventos para festividades juninas que contrataria bandas do gênero musical “axé music”, o que, segundo o Ministério Público, descaracterizaria o respeito ao direito fundamental ao patrimônio cultural. A procuradoria especializada fundamentou sua legitimidade processual na defesa dos bens culturais no plano das relações de trabalho, não podendo a empresa exigir dos artistas e músicos a violação do direito ao patrimônio cultural por executar gênero distinto do que tradicionalmente vinculado aos festejos de São João.
O argumento novamente é o da autenticidade. O gênero “axé music” teria data certa para ocorrer; o carnaval. Haveria, portanto, ausência de representatividade que só seria suprimida pela contratação de bandas e músicos que executassem gêneros musicais correlacionados com o período junino. Ao final, requereu a proibição da contratação de bandas e músicos para o evento junino que não estivessem relacionados com o período, e sua substituição com o respectivo cancelamento, caso já tivesse ocorrido o negócio jurídico com as bandas de “axé music”, com a consequente vedação da participação e da execução de músicas do gênero na festa, sob pena de interdição. É possível imaginar o que pensariam, hoje em dia, das dancinhas de Tik Tok e das batidas de funk e pancadão que sonorizaram várias apresentações de quadrilhas Brasil afora e Reels de usuários do Instagram, durante junho.
Infelizmente, a magistrada da Justiça do Trabalho da Bahia, não adentrou no mérito da demanda, ou seja, o pedido de modificação do formato da festa junina em virtude de sua descaracterização. Extinguiu o processo sem a resolução do mérito sob a justificativa de que a Justiça do Trabalho não seria competente para apreciar e julgar a lide, pois a causa de pedir, isto é, a alegação de danos ao patrimônio cultural, não guardaria direta ou indiretamente vinculação com relações de trabalho.
Todos esses exemplos, antigos e atuais, são demonstrações não apenas do peso simbólico que certos elementos possuem nas formas de celebração da cultura popular, mas também dos perigos que proibições e ativismos institucionais, sem justificativa e fundamento plausíveis na Constituição de 1988, e certas concepções essencialistas das manifestações culturais podem carregar, de certa forma, contribuindo muito mais para um desestímulo à prática dos festejos do que propriamente resguardá-los. Proteger/salvaguardar não é limitar, tampouco direcionar.
*Rodrigo Vieira - Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFERSA, Coordenador do Curso de Direito da mesma instituição e Membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult
Notas e referências
[1] JUSTIÇA NO INTERIOR. LAJE: OAB derruba na Justiça Federal decreto que proibiu a queima de fogueiras. 22 jun. 2022. Disponível em: https://justicanointerior.com.br/laje-oab-derruba-na-justica-federal-decreto-que-proibiu-a-queima-de-fogueiras/.
[2] CONJUR. Peso de menos – Juíza cancela eleição de Rei Momo magro na Bahia. Revista Consultor Jurídico. 23 jan. 2008. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-jan-23/juiza_cancela_eleicao_rei_momo_magro_bahia.
[3] CONJUR. Disputa de quilos – Peso do Rei Momo de Salvador volta a ocupar Judiciário baiano. Revista Consultor Jurídico. 25 jan. 2008. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-jan-25/peso_rei_momo_volta_ocupar_judiciario_baiano.
[4] CONJUR. Segurança na festa – Juíza proíbe uso de máscaras de carnaval na Paraíba. Revista Consultor Jurídico. 12 fev. 2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-fev-14/juiza-proibe-uso-mascaras-carnaval-queimadas-paraiba.
[5] CONJUR. MPT quer proibir axé em festa junina na Bahia. Revista Consultor Jurídico. 29 maio 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-mai-29/mpt-trt-bahia-tentar-impedir-axe-festa-junina.
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