“[...] Banalizam a violência e a coerência some
Já não sabem se são homens ou são ratos
Dominados por aquilo que consomem
Acreditam mais nas fake news
Do que nos próprios fatos [...]”.
(Um só – Gabriel o Pensador)
"A man with "fake news" rushing to the printing press", no Wikimedia Commons
A expressão fake news já se tornou parte do vocabulário e dos dicionários de várias línguas do mundo, apesar de ser cunhada no inglês. Atrás de sua aparente simplicidade e evocação de entendimento comum, não sendo algo novo na história (1) , se despregou do emprego contemporâneo quase que restrito à comunicação social e à propaganda para ser assunto obrigatório na vida cotidiana, em concorrência ou até mesmo dividindo igualmente a atenção das pessoas com a pandemia.
Aliás, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (2) , juntamente com a COVID-19 adveio uma peste de outra natureza, a ser enfrentada na mesma escala por comprometer o combate à doença: a infodemia, um conjunto de informações inverídicas ou nada confiáveis compartilhadas numa velocidade incomum sobre curas, tratamentos, remédios, vacinas e milagres, prometendo vencer a batalha contra o novo corona vírus, contrárias às orientações dos órgãos de saúde, às análises científicas ou até contestatórias da sua credibilidade.
Apesar dos danos ocasionados pelo fenômeno, os debates em torno dele demonstram uma insuficiência e um esgotamento da expressão “notícia falsa” (na tradução literal para o português), pois se restringe a um aspecto dos tipos de informação que vezes podem representar até potencialmente um risco bem abaixo do que as consequências concretas da extensão e complexidade da abrangência daquilo que se conhece como desinformação. Em pesquisa que trata sobre o quadro jurídico da regulação da disseminação da desinformação na internet no âmbito da União Europeia e da Holanda, encomendada pelo governo holandês, o Institute for Information Law – IvIR (3) conclui que erros jornalísticos facilmente identificáveis e retificáveis e discordâncias conflituosas naturais do ambiente político da democracia sob a expressão fake news acabam por atenuar os altos riscos de ações organizadas por grupos extremistas que amplificam de forma automatizada a produção de informações com o propósito deliberado de enganar ou obter vantagem econômica para interferir no processo político dos Estados-Membros da União Europeia.
Em outro relatório produzido pelo Conselho da Europa (Information Disorder: Toward on Interdisciplinary Framework for Research and Policy Making), em 2017 (4) , sugere-se que o termo “fake news” seja abandonado por simplificar a desinformação. Assim também, propõe que o fenômeno seja diferido em duas outras camadas: a má informação, aquela baseada na realidade, mas cujo uso pode ser danoso no sentido de atingir grupos, pessoas, instituições e países (p. ex. sensacionalismo, tabloides), e a camada das pseudoinformações, aquelas que se sabem ser falsas, mas que não são fabricadas com intuito de prejudicar ou causar dano em regra. Inserem-se nessa última categoria sátiras, paródias, deep fakes (técnica de combinação de imagens, sons ou vídeos a partir de inteligência artificial para produção alterada de novo conteúdo) com intuito humorístico, memes, sites de pseudonotícias de humor, tudo aquilo que é tratado como informação não maliciosa, porém com a ressalva de que não tenha serventia para impulsionar informação falsa.
Falar em notícia falsa é uma contradição nos termos. Para a Entidade Reguladora da Comunicação Social portuguesa (5) , as narrativas é que são falsas, ainda que sejam anunciadas como notícias. Nesse sentido, a desinformação está para além daquilo se que se pode considerar como conteúdo ilícito que se sujeita a tratamento jurídico específico de acordo com o objeto tutelado, como discurso do ódio, violação à honra e à imagem, violação de direitos autorais, exposição da intimidade sem autorização, pornografia de vingança, abuso sexual, pornografia de vingança ou infantil, extorsão, incitação ao terrorismo etc. Esta também foi a conclusão à qual chegou a Comissão Europeia em Recomendação sobre Medidas para Combate de Compartilhamento de Conteúdo Ilegal Online (6) .
Assim, não se trata apenas da falsidade da informação, mas do seu fluxo, desde a produção à distribuição, em regra adotando automação ou técnicas como astroturfing na qual se dá a aparência de legitimidade e espontaneidade a uma informação ou instituição quando em verdade se mascara seus reais patrocinadores e apoiadores. Ou deep fakes que adulteram vídeos sobre fatos reais e públicos, atribuindo atos, situações ou discursos a pessoas ou organismos com os quais não há nenhum envolvimento direto com determinado episódio ou fato, ou mesmo a manipulação de situações reais que se toma como verdadeira. Ou ainda o uso de robôs em redes sociais para promover comportamentos inautênticos articulados, como o compartilhamento massivo de mensagens em posts de diferentes perfis falsos, bem como o famoso microdirecionamento não autorizado de propaganda baseado no extrativismo ilegal de dados de usuários.
Diante da complexidade do fenômeno, a Comissão Europeia (7) vem empregando um conceito de desinformação com uma abrangência que corresponda à amplitude da regulação e que abarque diferentes formas de comunicação. Desse modo, a desinformação consiste em toda informação falsa ou enganosa veiculada e difundida com o intuito deliberado de ludibriar o público e/ou obter ganhos econômicos, podendo ocasionar danos sociais, como à ordem democrática, aos processos eleitorais, às políticas públicas, à saúde e à segurança pública.
As medidas europeias para combate à desinformação mobilizam diferentes matérias jurídicas e permeiam distintas áreas, ou seja, ultrapassam a noção tradicional associada apenas aos veículos de mídia e sua regulação. Muitas orientações se voltam para a legislação eleitoral, a regulação das plataformas de conteúdo e a observância do Regulamento Geral de Proteção de Dados no ambiente digital. Ainda em 2018, a Comissão Europeia elaborou um Código de Conduta da UE sobre Desinformação (8) , na qual plataformas como Facebook, Google e Twitter, e, mais recentemente, a Tik Tok, bem como empresas de publicidade, comprometeram-se, de forma autorregulatória, a adotar desde políticas de transparência em relação aos anúncios veiculados quanto a proceder com ações de suspensão e bloqueio de contas, páginas e perfis que disseminem desinformação.
Entretanto, as plataformas já dispõem de poder nas sociedades informacionais.
Deixá-las à própria sorte é ignorar que se corre o risco de que não discutam a regulação da desinformação de maneira aberta e pública. Tal temor é acentuado com a adoção de filtros de conteúdo pelas plataformas no gerenciamento de conflitos atinentes às denúncias sobre desinformação. Sem falar que há atualmente forte controle privado dessas plataformas por empresas multinacionais (9). Para haver um equilíbrio, não é necessária somente a transparência para com os usuários, mas que eles participem efetivamente das discussões sobre o funcionamento das plataformas e o respeito aos seus direitos fundamentais (10) .
De acordo com recente documento assinado por múltiplas organizações latino- americanas “Padrões para uma regulação democrática das grandes plataformas que garanta a liberdade de expressão online e uma Internet livre e aberta” (11) , um modelo de corregulação, desenhado e definido legalmente, no qual estejam previstos diretrizes gerais e resultados aplicáveis a todas as plataformas, discutido e supervisionado multissetorialmente, aplicado pelas próprias empresas e controlado por ente autônomo com poder sancionatório, estaria mais compatível com padrões democráticos internacionais e com a garantia dos direitos humanos. Estabeleceria um equilíbrio entre usuários e plataformas, mas também entre estas e os governos, diminuindo igualmente seus poderes de intermediário no controle de conteúdos, um risco para a liberdade de expressão tanto quanto a censura estatal.
Ainda assim, o Código de Conduta Europeu propõe o atingimento de certos objetivos, anteriormente previstos pela Comunicação da Comissão Europeia, para soluções desejáveis contra a desinformação, como sinalizações para dar maior credibilidade a informações, a diversidade para fundamentar decisões críticas com diferentes fontes, cooperação entre governo, plataformas e usuários, transparência na adoção de mecanismos eficazes para proteção dos usuários, verificação de fatos, diminuição da visibilidade pelos usuários de informações falsas, regras para robôs a fim de que não sejam confundidos com atividade humana, dentre outros.
Embora a repercussão dos efeitos da desinformação se sinta com maior proeminência no campo político-eleitoral, dado o indício de sua influência nos resultados das eleições de diversos países, dentre eles o Brasil (12) , e na saída do Reino Unido da União da Europeia (Brexit) (13) , a sua regulação não deve se circunscrever somente aos pleitos sazonais. Todos os setores sociais, culturais, econômicos e até desportivos de alguma maneira são vítimas da proliferação de conteúdos enganosos. Daí porque se centrar de forma atomizada no monitoramento e na vigilância do teor de determinadas informações, bem como na criação de novos tipos penais para identificar e controlar práticas de um ou outro usuário, além de pôr em causa direitos fundamentais como a liberdade de expressão, de opinião e de acesso à informação, proteção de dados pessoais e a privacidade, não combate eficazmente a cadeia de produção, disseminação e distribuição da desinformação (14) .
Segundo pesquisa do Observatório da Comunicação – OberCom (15) , realizada no ano de 2018, cerca de 62% dos portugueses confiam em notícias. Contudo, antes de este dado ser em alguma medida revelador da credibilidade dos veículos de mídia tradicionais, remete à possibilidade de que os portugueses possam estar atribuindo o status de notícia a informações falsas que circulam nas redes sociais, em particular no Facebook. De outro modo, o mesmo relatório afirma que mais de 70% dos inquiridos demonstram preocupar-se se o conteúdo enganoso das informações que consomem, ao tempo em que pouco mais de 65% admitem receio com o jornalismo e a publicidade de má qualidade.
Este pequeno retrato de apenas um dos recortes do complexo fenômeno da desinformação apresenta forte sinal de que os cidadãos portugueses parecem estar atentos às informações enganosas na internet. Entretanto, apesar da precaução, os dados não conseguem dizer se de fato essas pessoas distinguem informações falsas e verdadeiras. Na União Europeia, de acordo com a Comunicação da Comissão Europeia “Combater a Desinformação Online: Uma Estratégia” (16) , 83% por cento dos cidadãos europeus consideram que a desinformação é um problema atual da democracia. Desse percentual, 45% afirmam “claramente”, e 38% creem que seja em “certa medida”.
Visto isso, a preservação e a garantia do debate público nas democracias parecem ser preocupações em todo mundo. Todavia, o combate à desinformação não pode se dar de qualquer forma ou maneira, ou endossamos assim o poder privado das plataformas multinacionais (monopólios ou oligopólios), ou aumentamos os podereis estatais; tampouco se ignora os riscos de uma regulação cuja estratégia é ter como alvo certos conteúdos ou usuários, o que dá margem para perseguições de natureza ideológica como as que atualmente presenciamos por governos neoconservadores (17) e patrulhamento de movimentos sociais e prisões de ativistas. É necessário ser equilibrista, nada apressado, incidindo sobre aquilo que se constitui de fato sobre comportamentos abusivos e inautênticos orquestrados nas redes sociais.
Rodrigo Vieira
(Investigador Visitante em Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra/Vice-Coordenador do Mestrado em Direito da
UFERSA/Coordenador do DiGiCULT – Estudos e Pesquisas em Direito Digital e
Direitos Culturais da UFERSA)
Texto concluído em: 15.08.2020
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1 SUNSTEIN, CASS R. A verdade sobre boatos: como se espalham e por que acreditamos neles.
Tradução Marcio Hack. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
2 OMS. Working together to tackle the “infodemic”. 29 jun. 2020. Disponível em:
https://www.euro.who.int/en/health-topics/Health-systems/e-health/news/news/2020/6/working-together-
to-tackle-the-infodemic. Acesso em: 13 ago. 2020.
3 IViR. HOBOKEN, Joris van et al. Legal framework on the dissemination of disinformation through
Internet services and the regulation of political advertising. Final Report, December 2019. Disponível
em: https://www.ivir.nl/publicaties/download/Report_Disinformation_Dec2019-1.pdf. Acesso em: 21 jul.
2020.
4 CONSELHO DA EUROPA. WARDLE, Claire; DERAKHSHAN, Hossein. Information Disorder
Toward an interdisciplinary framework for research and policymaking – Council of Europe report
DGI (2017)09. 27 set. 2017. Disponível em: https://rm.coe.int/information-disorder-toward-an-
interdisciplinary-framework-for-researc/168076277c. Acesso em: 12 ago. 2020.
5 ERC. A Desinformação—Contexto Europeu e Nacional. 4 abril de 2019. Disponível em:
https://www.parlamento.pt/Documents/2019/abril/desinformacao_contextoeuroeunacional-ERC-
abril2019.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.
6 COMISSÃO EUROPEIA. Commission Recommendation of 1.3.2018 on measures to effectively tackle
illegal content online. Disponível em: https://ec.europa.eu/newsroom/dae/document.cfm?doc_id=50095.
Acesso em: 10 ago. 2020.
7 COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão ao Parlamento europeu, ao Conselho, ao
Comité Económico e Social europeu e ao Comité das Regiões – Combater a desinformação em linha:
uma estratégia europeia (COM/2018/236 final). 26 abril 2018. Disponível em: https://eur-
lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52018DC0236&from=pt. Acesso em: 12 ago.
2020.
8 COMISSÃO EUROPEIA. Código de Conduta da UE sobre Desinformação. Disponível em:
https://ec.europa.eu/newsroom/dae/document.cfm?doc_id=59123. Acesso: 10 ago. 2020.
9 INTERVOZES. 10 maneiras de enfrentar a desinformação – Como enfrentar a desinformação sem
fragilizar a liberdade de expressão. Disponível em: https://intervozes.org.br/publicacoes/10-maneiras-de-
enfrentar-a-desinformacao/. Acesso em: 28 jul. 2020.
10 COALIZÃO DE DIREITOS NA REDE. Nota pública sobre o projeto da Lei Brasileira de Liberdade,
Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 1429/2020 e PL 2630/2020). 15 maio 2020.
Disponível em: https://www.codingrights.org/nota-publica-sobre-o-projeto-da-lei-brasileira-de-liberdade-
responsabilidade-e-transparencia-na-internet-pl-1429-2020-e-pl-2630-2020/. Acesso em: 14 ago. 2020.
11 INTERVOZES et al. Padrões para uma regulação democrática das grandes plataformas que garanta
a liberdade de expressão online e uma Internet livre e aberta. – Uma perspectiva latino-americana para
alcançar processos de moderação de conteúdo compatíveis com os padrões internacionais de direitos
humanos. Jul. 2020. Disponível em: https://app.rios.org.br/index.php/s/XnQtAqTfcmgqMwK . Acesso
em: 10 ago. 2020.
12 GOMES, Wilson da Silva; DOURADO, Tatiana. Fake news, um fenômeno de comunicação política
entre jornalismo, política e democracia. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 33-
45, nov. 2019. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view/1984-
6924.2019v16n2p33 . Acesso em: 14 ago. 2020.
13 NORRIS, Pipa; Inglehart, Ronald. Cultural Backlash: Trump, Brexit, and Authoritarian Populism.
New York, NY : Cambridge University Press, 2018.
14 INTERNETLAB. CRUZ, Francisco Brito; MASSARO, Heloisa; FRAGOSO, Nathalie. Estratégias de
Proteção do Debate Democrático na Internet – Diferenças entre controle de conteúdo e de
comportamento inautêntico e os riscos da abordagem via direito penal – Diagnósticos e Recomendações
n. 2. Jul. 2020. São Paulo: Internetlab, 2020. Disponível em: https://www.internetlab.org.br/wp-
content/uploads/2020/07/il_policypaper2_estrategias-de-protecao_20200715.pdf. Acesso em: 02 ago.
2020.
15 OBERCOM. CARDOSO, Gustavo et al. As fake news numa sociedade pós-verdade: contextualização,
potenciais soluções e análise. Jun. 2018. Disponível em: https://obercom.pt/wp-
content/uploads/2018/06/2018-Relatorios-Obercom-Fake-News.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.
16 COMISSÃO EUROPEIA. Op. cit.
17 SILVA, Frederico Barbosa da Silva; ZIVIANI, Paula. O novo conservadorismo na cultura: arte,
liberdade de expressão e política cultural. In: AFIPEA (Org.). Mais Brasil ou Austericídio. 2019.
Disponível em: http://afipeasindical.org.br/content/uploads/2019/12/Austericidio-10.pdf. Acesso em: 10
ago. 2020. CAMUS, Jean-Yves; LEBOURG, Nicolas. Far-Right Politics in Europe. Cambridge,
Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2017.
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