O tombamento é, de fato, o instrumento de proteção do patrimônio cultural mais conhecido e utilizado no país. Não poderia ser diferente, afinal, é o único instrumento que possui uma lei (ou melhor, um Decreto-lei que tem força de Lei) desde 1937 e ainda em vigor.
Não obstante, desde 1988, a Constituição Federal prevê pelo menos quatro outros instrumentos protetivos ao patrimônio cultural: os inventários, os registros, a vigilância e a desapropriação. Sem falar na cláusula aberta constante no final do parágrafo segundo do art. 216, que dá ao Estado a possibilidade de criar outras formas de acautelamento e preservação.
Nenhum dos outros quatro instrumentos foram regulamentados por lei a nível federal. O registro é um Decreto, facilmente revogável por decisão discricionária do chefe do Poder Executivo Federal. Os inventários, coitados, não possuem sequer lei regulamentadora, apenas subsistindo no âmbito das Portarias e demais normativos internos do IPHAN.
A desapropriação, por sua vez, possui regulamentação normativa desde 1941 e, apesar de estar expressamente previsto que é possível desapropriar, com fulcro no interesse público, para fins de proteção do patrimônio histórico-cultural, esse instrumento jurídico poucas vezes é citado ou mesmo utilizado como uma das formas de proteção dos bens culturais materiais.
O fato é que grande parte da legislação existente no país, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, ainda é muito focada na utilização dicotômica do tombamento como instrumento de proteção do patrimônio cultural material e no registro como instrumento de proteção do imaterial.
Sobre a distinção meramente didática e artificial entre patrimônio cultural material e imaterial, não há o que se falar além do que já foi dito. Ao que parece, o momento é outro: o de repensar o processo que leva à proteção estatal dos bens de valor cultural, para que seja possível sair de uma perspectiva segmentada e partir para uma avaliação mais abrangente e eficaz.
As diversas nuances dos bens de valor cultural devem ser avaliadas de forma conjunta, e devem ser vários os instrumentos postos à disposição do gestor público de cultura para dar concretização à proteção desses bens. É preciso, portanto, sair da dicotomia “tombamento ou registro” e expandir o leque de possibilidades de instrumentos para proteção do patrimônio cultural.
A chancela da paisagem e a declaração como lugar de memória, por exemplo, são mecanismos já bastante estudados pelos pesquisadores da área, mas ainda pouco utilizados na prática da gestão patrimonial. Já os inventários, ainda que utilizados, são pouco regulamentados, pairando uma eterna discussão sobre seus efeitos jurídicos, especialmente quando comparados ao tombamento.
Os instrumentos de direito urbanístico, tais como o direito de preempção (preferência dada ao poder público para compra de imóveis) e a transferência do direito de construir (transferência do potencial construtivo de um imóvel para outro) são expressamente previstos como instrumentos de proteção do patrimônio cultural no Estatuto das Cidades, mas são pouco lembrados e utilizados pela gestão pública de cultura.
Aliás, pensar a proteção do patrimônio cultural nas cidades é, necessariamente, pensar no direito urbanístico e em seus instrumentos. Ações desconectadas, pontuais, que não prevejam a relação entre a proteção do bem e sua existência nas cidades são fadadas ao fracasso, motivo pelo qual é essencial ter os instrumentos urbanísticos na ponta do lápis para trabalhar com gestão pública do patrimônio cultural.
O problema não é, portanto, a falta de instrumentos jurídicos para proteção do patrimônio cultural. Os instrumentos existem. Falta, ao que parece, regulamentar como se dá a escolha desses instrumentos na prática, e como eles podem ser utilizados, inclusive de forma combinada, para garantir uma máxima eficácia na proteção.
Por enquanto, permanece a dicotomia e a aplicação segmentada dos instrumentos protetivos, prejudicando os bens culturais e o acesso ao patrimônio cultural protegido.
*Cecilia Rabêlo, advogada, mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
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