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Wexler v. Goodman: Lições sobre copyright e marca

Atualizado: 24 de mar. de 2022


Figura 1. Frame do episódio em que Kim Wexler (de perfil) é surpreendida por Saul Goodman (no telão e de costas segurando a foto) com a tese de violação de copyright da fotografia do caubói que foi usada indevidamente na marca do Banco.


Criada por Vince Gilligan e Peter Gould, Better Call Saul é um spin-off da cultuada série Breaking Bad, ambas distribuídas, no Brasil, pela Netflix. Para quem não está familiarizado com esse termo da indústria do entretenimento, nos termos da Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei 9.610/98), o spin-off poderia ser entendido da seguinte maneira: Breaking Bad seria a obra originária, enquanto Better Call Saul se caracterizaria, portanto, como uma obra derivada, que aprofunda a narrativa sobre um personagem.


A referida obra derivada narra a história do advogado “Jimmy” McGill, até ele finalmente se tornar Saul Goodman. Interpretado pelo ator Bob Odenikirk, Saul é um advogado quixotesco, popularmente conhecido pelo seu slogan “Better Call Saul!”, oriundo da massiva publicidade dos seus serviços jurídicos, que, por sinal, é muito comum nos Estados Unidos.


No Brasil, aliás, a publicidade dos advogados foi recentemente objeto de regulamentação pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil através do Provimento 205/2021 que ficou bastante conhecida por vedar “em qualquer publicidade a ostentação de bens relativos ao exercício ou não da profissão, como uso de veículos, viagens, hospedagens e bens de consumo, bem como a menção à promessa de resultados ou a utilização de casos concretos para oferta de atuação profissional”.


Será que em tempos de Meta e TikTok essa vedação será observada? Será que faz sentido esse provimento se aplicar ao exercício ou não da profissão? Uma coisa é certa: Saul Goodman não estaria em conformidade com essa orientação caso atuasse por aqui, sendo um legítimo representante da vertente “advocacia ostentação” nas redes sociais e outras mídias.


Para quem nunca viu a série, Saul Goodman é um daqueles personagens cativantes e, ao mesmo tempo, complexos que descontroem o estereótipo dos advogados retratados por outras obras seriadas norte-americanas as quais influenciam, de forma surpreendente, o imaginário de muitos discentes que ingressam em progressão geométrica – e agora de forma remota – nas faculdades de Direito no Brasil.


Por conta disso, Better Call Saul deveria ser trabalhada em sala de aula logo no primeiro período do curso de graduação em Direito, de preferência depois daquela aula sobre Norma Hipotética Fundamental de Kelsen no intuito de quebrar as idealizações e certezas do mundo jurídico, principalmente aquilo que Warat denominou de “senso comum teórico dos juristas”, pois o advogado Saul Goodman é cheio de contradições e imperfeições, tal qual a Ciência Jurídica, proporcionando uma ruptura com a “pinguinização” exposta por certas obras audiovisuais e reproduzidas nos corredores das nossas faculdades.


Só para esclarecer: essa metáfora do pinguim era utilizada por Luis Alberto Warat sobretudo em seus ensinamentos orais para demonstrar a padronização e a massificação do ensino jurídico; como se os estudantes de Direito, principalmente nos últimos anos da graduação, fossem produzidos em massa, todos de terno escuro e camisa branca (lembrando a coloração alvinegra da ave), portando-se da mesma forma, marchando, sem desejos e sonhos, num mesmo sentido, como se pinguins fossem.


Depois da lição sobre Kelsen – que Warat certamente apoiaria – a aula seguinte poderia versar sobre copyright. Sim, um dos temas que se aprende com Saul Goodman, vendo a mencionada série, é sobre direitos autorais. Contém spoiler a partir daqui!


A série não trata exatamente de Propriedade Intelectual, sempre girando em narrativas que envolvem direito previdenciário, bancário, fundiário e, claro, penal, mas há um episódio específico em que os direitos intelectuais assumem uma relevância na trama.


No sexto episódio da quinta temporada da série - dirigido por Michael Morris e roteirizado por Thomas Schnauz – denominado de Wexler v. Goodman, há uma controvérsia sobre propriedade intelectual que demonstra a genialidade de Goodman e o seu afiado conhecimento sobre copyright.


Como o próprio título pressupõe, este episódio é um ponto de confrontação entre dois advogados protagonistas da obra seriada, Kim Wexler e Saul Goodman, que tem o seu ápice em torno de um tema específico envolvendo Direito Marcário e Direito de Autor, duas áreas tradicionais da Propriedade Intelectual.


Vale ressaltar um esforço interpretativo em utilizar o referido imbróglio da série para pensar como a lei brasileira opera em casos similares. Essa ressalva é importante, pois o sistema de copyright norte-americano é diferente do sistema continental de droit d`auteur, francês que o Brasil é filiado.


Vale repetir que há, atualmente, vigentes no mundo capitalista ocidental, esses dois sistemas distintos de direitos autorais (copyright e droit d`auteur), o que gera, na prática do mercado global do entretenimento, diversas questões jurídicas e ruídos, como por exemplo a renúncia ou negociação de certos direitos, que são considerados irrenunciáveis. Um bom exemplo é o direito de nominação (conhecido popularmente como crédito), que é considerado irrenunciável pelo direito autoral brasileiro (que vem da tradição francesa) e, por outro lado, perfeitamente cabível no sistema de copyright norte-americano.


Mas, retomando à série, com o ratificado alerta de spoiler, é possível resumir a demanda da seguinte forma: a empresa Mesa Verde Bank & Trust usou indevidamente uma fotografia – sem autorização da autora, que é cliente de Saul – para constituir a logomarca da companhia. A imagem de um caubói montando num cavalo num cenário árido com um cacto ao fundo é retratada na obra artística e replicada integralmente na marca da empresa.


Nesse episódio, o proprietário do Banco Mesa Verde ao ser exposto a esse ato ilícito argumentou enfaticamente que ele tinha comprado a fotografia, ou seja, que era o legítimo proprietário da obra de arte e, portanto, poderia fazer o que bem entendesse com aquela coisa.


Em exposição digna dos pinguins da série Suits – isto é: com uma argumentação surpreendente, genial e arrebatadora – o advogado Saul Goodman construiu a tese de que ocorreu infração dos direitos autorais da sua cliente fotógrafa, pois em nenhum momento houve um licenciamento dos direitos autorais da obra fotográfica para criação da marca do Banco Mesa Verde.


Aqui no Brasil, a norma que regula o assunto é a Lei de Propriedade Industrial (LPI, Lei 9.279/96). Ela dispõe que “são suscetíveis de registro como marca os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais”. A própria LPI, veda essa apropriação do Banco Mesa Verde, que estaria impedido de registrar sua marca, pois estaria em rota de colisão com o disposto no art. 124:


Art. 124. Não são registráveis como marca:


[...]


XVII - obra literária, artística ou científica, assim como os títulos que estejam protegidos pelo direito autoral e sejam suscetíveis de causar confusão ou associação, salvo com consentimento do autor ou titular;


Esse é o ponto de tensão desse episódio trazido aqui e a lição dada por Saul Goodman de que não é porque o banqueiro adquiriu o suporte onde se materializava a obra intelectual, que é lícito fazer outros usos sobre o conteúdo intangível da obra, sem autorização prévia e expressa da fotógrafa.


Saul Goodman, além de anti-pinguim, ostenta muito conhecimento sobre copyright.



*Mário Pragmácio é professor do Departamento de Arte da UFF, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), mestre em Museologia e Patrimônio, especialista em Patrimônio Cultural e doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional



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