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Se considerarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a expressão “direitos culturais” já circula pelo planeta há mais de sete décadas; se observarmos direitos culturais específicos, como o direito à educação, eles já são mais que centenários por estarem presentes nas primeiras constituições de perfil social. Não obstante estes fatos, os direitos culturais ainda recebem designações como “filhos pródigos dos direitos humanos”, “direitos subdesenvolvidos”, “primos pobres”, entre outros. Por que isso acontece?
Certamente, trata-se de um problema relevante e, como tal, costuma ter várias causas, que precisam ser combatidas simultaneamente, sob pena de o problema persistir. Identificar tais causas é um desafio adicional que demanda investigação, porém, algumas hipóteses podem ser apresentadas.
Uma dessas hipóteses relaciona-se à definição e, por conseguinte, ao dimensionamento do que sejam os direitos culturais. No livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”, de minha autoria, fazendo alusão ao periódico brasileiro “Revista Observatório Itaú Cultural nº 11”, relato que “Farida Shaheed, a primeira especialista independente no campo dos direitos culturais nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), ao responder em 2011 à pergunta ‘Que direitos podem ser classificados como culturais?’, ancorou-se na relação dos que são pontualmente mencionados em documentos internacionais.
Sem encontrar parâmetros teóricos para configurá-los, estabeleceu como uma das principais metas do seu mandato a de ‘pesquisar mais sobre como distinguir melhor os direitos humanos que podem ser considerados culturais e, também, como definir melhor o teor desses direitos de forma preliminar’”. [1]
Em seu belíssimo primeiro relatório apresentado ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, intitulado “Direitos culturais: um programa empoderante” [2], pelo qual introduz seu plano de ação, Alexandra Xanthaki, a atual observadora da ONU para os direitos culturais, também aparenta preferir a segurança da normatividade, como pode ser visto no tópico “II. Marco Jurídico”, no qual enfatiza os mais conhecidos artigos de declarações e convenções que tratam dos aludidos direitos.
Essa tendência de recorrer às normas para tratar e valorizar os direitos culturais também percorre, nos últimos 30 anos, o chamado novo constitucionalismo latino-americano, caracterizado exatamente por enaltecer elementos tão valorizados na farta obra acadêmica de Alexandra Xanthaki: as culturas autóctones, as minorias e o meio ambiente, elementos evidenciados pela expressão “Pachamama”, que dá ao nosso planeta o título de mãe e valoriza a figura feminina, algo com profundo parentesco, em termos de concepção, à ideia de “Gaia”, emanada do mítico mundo helênico, a sua terra de origem.
A partir desta concepção, as constituições e a significativa quantidade de leis do Brasil, Argentina, México, Colômbia, Bolívia, Equador, entre outras, incrementaram muito suas listas de direitos culturais. Também o ensaio de documentos regionais ou esboços acadêmicos, como a Carta Ibero-Americana de Direitos Culturais e Declaração de Friburgo, vão no mesmo sentido. Todavia, alguns dos problemas relativos aos referidos direitos persistem, como a falta de fomento, as exclusões culturais e a falta de respeito à diversidade, o que inclui práticas de censura.
Essa constatação leva à hipótese de que, diferentemente de outras disciplinas jurídicas, que podem ser conhecidas apenas pela matéria de que tratam ou da especificação de preceitos legais, os direitos culturais são bem mais complexos porque além de uma multiplicidade limitada das matérias de que tratam (relações jurídicas sobre artes, memórias coletivas e fluxos de saberes), somente podem ser entendidos a partir de um fino equilíbrio transtemporal (em que o ‘passado’ nos ensina suas experiências, ‘o presente’ nos possibilita novos experimentos, e o ‘futuro’ deve nos guiar para vivências aprimoradas), e pelo cumprimento de objetivos maiores que a humanidade traçou para si: dignidade, desenvolvimento e paz.
Entender essa complexidade e com ela elaborar uma definição, nos permitirá distinguir uma manifestação cultural qualquer de outra que pode ostentar o status de direito cultural e, neste âmbito, dar precisão às declarações, às convenções aos direitos nelas previstos, bem como criar garantias que ajudem a torná-los efetivos.
Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult, Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral – IODA, Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).
Notas
[1] Cunha Filho, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais (pp. 7-8). Edições Sesc SP. Edição do Kindle.
[2] Ver a íntegra em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G22/289/47/PDF/G2228947.pdf?OpenElement
O presente texto serviu de base para o autor comentar a palestra proferida por Alexandra Xanthaki, a atual observadora da ONU para os direitos culturais, durante as 2ª Jornadas Nacionais sobre Direitos Culturais, promovidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Argentina, que pode ser acessada por este link
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