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Os (des)usos retóricos do patrimônio cultural 

Foto do escritor: Blog OpiniãoBlog Opinião

Esta foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY
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O patrimônio cultural (material ou imaterial) é repositório vivo da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, que se encontra em constante tensão [1] pelos usos e desusos sociais que esses mesmos grupos lhes imprimem na construção das suas narrativas históricas, em que alguns almejam a manutenção do status quo e outros reivindicam o seu legítimo espaço na história, como negros e indígenas através da patrimonialização das suas manifestações culturais. 


A Constituição de 1988 elege duas categorias de atores principais que de forma colaborativa devem atuar na seleção, promoção e proteção do patrimônio cultural: o poder público e a comunidade [2], termos que possuem um sentido amplo e abrangente (hiperônimo), o que é utilizado por alguns grupos para buscar caminhos enviesados para alcançar seus próprios interesses econômicos, escudados na instrumentalização do patrimônio cultural por intermédio de uma retórica artificializada. 


O conceito de poder público é o mais desvirtuado. Utilizado indevidamente para afrontar a separação dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), está se disseminando em todo o país uma prática inconstitucional: a do Poder Legislativo se imiscuir em campo próprio do Poder Executivo, alijando-o do seu mister de proceder, em conjunto com a comunidade, a seleção, promoção e proteção do patrimônio cultural.  


Desta forma, os espaços democráticos de participação da comunidade como intérpretes do seu patrimônio junto aos órgãos/entes dedicados ao patrimônio cultural como o Iphan estão sendo esvaziados. E não apenas isto, o Legislador também está produzindo normas com a conivência do Executivo, que desvirtuam a realidade para violar direitos constitucionais sob o manto do patrimônio cultural, como se esse status fosse capaz, por si só, de neutralizar violações de direitos, como é exemplo os casos da vaquejada que infringe maus-tratos aos animais e das barracas de praia em Fortaleza que permite a apropriação privada de um bem de uso comum do povo. 


A vaquejada foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial pela Lei n° 13.364/2016 e, posteriormente, a Emenda Constitucional n° 96/2017, para assegurar a continuidade desta prática cultural que provoca maus-tratos aos animais, introduziu na Constituição um novo parágrafo no artigo 225, estabelecendo que “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais” registradas como patrimônio cultural brasileiro.  


Trata-se de um argumento exageradamente artificial, desprovido de seriedade e de profundidade, que nem mesmo Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), político e tribuno, de reconhecidos atributos oratórios [3] conseguiria êxito em convencer um Tribunal sério do acerto de tão absurda norma constitucional, pois ela busca usar o patrimônio cultural como uma espécie de escudo legitimador de atos violadores de outros direitos fundamentais, como o meio ambiente que protege os animais de ações que lhes causem maus-tratos, e, portanto, patentemente inconstitucional, mas que pela morosidade do Judiciário brasileiro ainda não teve seu julgamento em sede de controle de constitucionalidade finalizado.    


O outro exemplo dessa atuação legislativa que usurpa as competências do Poder Executivo, com a sua própria conivência, está na Lei n° 15.092, de 2025, que atribui às barracas de praia e a atividade desempenhada pelos barraqueiros da Praia do Futuro, em Fortaleza, o reconhecimento como patrimônio cultural brasileiro. No caso, tratam-se, em sua maioria, de grandes empreendimentos econômicos cuja infraestrutura não deixa nada a desejar, se comparada a grandes resorts. 


O reconhecimento por lei do valor cultural das barracas de praia e da atividade desempenhada pelos barraqueiros, contudo, é cheio de lacunas e de respostas não dadas a questões basilares, como saber qual a relevância cultural das barracas? Como ocorre a integração com a comunidade? A comunidade do entorno tem condições econômicas de frequentar as referidas barracas? E quais são os tipos de empregos gerados para a comunidade? Quem são os barraqueiros? E no que consiste a autenticidade das barracas? Todas essas perguntas são derivadas das afirmações constantes na lei e que não foram debatidas e nem esclarecidas no curso do processo legislativo, deixando tais afirmações totalmente vazias de sentido, mas possuidoras apenas de um des(uso) retórico usado para a proteção de referidos empreendimentos econômicos. 


A intenção do legislador de proteger esses empreendimentos econômicos é evidente no parágrafo único do artigo 2 que foi vetado porque buscava assegurar “a manutenção da atual estrutura das barracas de praia existentes na Praia do Futuro”, pois enfrentam processos judiciais destinados a demolição destas estruturas ilegalmente construídas porque se apropriaram da praia que é, repita-se, um bem de uso comum do povo. 


Assim, o que as normas que reconhecem a Vaquejada e as Barracas da Praia do Futuro como patrimônio cultural estabelecem não são proteções ao patrimônio cultural. Elas buscam assegurar a continuidade de empreendimentos privados, escudando-os no des(uso) retórico da existência de um valor cultural, que eles mesmos duvidam da sua real existência, tanto que buscam atalhos legislativos para não se submeterem ao diálogo com a comunidade, e nem aos requisitos legais que delineiam os procedimentos para a seleção, promoção e proteção do patrimônio cultural.    

 

Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor em Direito. Professor da Universidade do Estado do Amazonas. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult. É Autor do livro “Patrimônio cultural, democracia e federalismo” e coautor do livro “É disso que o povo gosta: o patrimônio cultural no cotidiano da comunidade” 

 

Notas: 

[1] LE GOFF, Jacques. História e memória: v. II memória. Trad. Ruy Oliveira. Lisboa: Edições 70, 2000. 

 

[2] MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. Patrimônio cultural, democracia e federalismo: comunidade e poder público na seleção dos bens culturais. Belo Horizonte: Dialética, 2020. 

 

[3] CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultural. São Paulo: Perspectiva: Sesc São Paulo, 2003, p. 558) 

 

 

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