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Cultura e natureza são palavras que em algumas situações são opostas, mas em outras a definição de uma deriva mutuamente da outra, numa relação constituidora de dois mundos complementares, como ensina Miguel Reale: “o do natural e o do cultural, do dado e do construído; do cru e do cozido” [1].
Essa relação de complementariedade projeta-se para o campo do direito em dois ramos, que mesmo possuindo uma associação íntima, formam dois corpos jurídico-normativos independentes: o dos direitos culturais e o do direito ambiental. Ramos do direito que se lançam para a defesa, respectivamente, das diferentes formas de manifestação cultural como o patrimônio cultural material e imaterial, e para a defesa do meio ambiente em suas diferentes dimensões, como o meio ambiente cultural e natural.
As aproximações desses ramos do direito decorrem do fato dos seres humanos serem, tanto o ponto de convergência entre cultura e natureza, como os destinatários da proteção jurídica conferida pelo Direito. A Convenção da Unesco para a Proteção do Patrimônio mundial, cultural e natural é reveladora dessa proximidade, mas também da existência de uma distinção entre eles, quando considera na definição de patrimônio cultural material a ação humana como essencial para a sua caracterização; e na definição de patrimônio natural exclui a ação humana, considerando aquele como algo dado pela natureza.
Assim, o campo de projeção dos direitos culturais e do direito ambiental deve ser respeitado, sob pena de adotar instrumentos jurídico-protetivos ineficazes. Desta feita, a proteção de um bem natural será insuficiente se for realizada apenas por instrumentos de proteção dos bens culturais, porque para estes o que se busca é a aferição da existência ou não do valor cultural, conforme prevê o artigo 216 da Constituição. Já para os bens naturais, a proteção que se busca alcançar é baseada no equilíbrio ecológico e na qualidade de vida, conforme previsto no artigo 225 da Constituição.
Desta forma, podemos citar o tombamento como exemplo de instrumento de proteção do patrimônio cultural material utilizado para a proteção de um bem natural, o Encontro das Águas dos rios Negro e Solimões, no Amazonas, destacando a insuficiência do mesmo para, por si só, promover a proteção deste patrimônio, pois além do seu valor cultural, a sua proteção demanda o atendimento de aspectos de equilíbrio ambiental que não são promovidos por este instrumento.
De igual forma, a tentativa de por meio de Projeto de Lei declarar o “espetáculo dos periquitos de asa branca” como patrimônio cultural imaterial [2] é inadequado, tanto na técnica jurídica, pois não se amolda à definição dada pela Convenção da Unesco de 2003 [3], que entende o Patrimônio Cultural Imaterial como sendo “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”, e nem se relaciona com uma manifestação cultural que envolve uma ação humana neste acontecimento natural, quanto para a própria proteção da revoada dos periquitos é necessária uma atuação que resguarde o equilíbrio ambiental, e permita a manutenção das condições naturais adequadas para a continuidade deste evento da natureza.
Desta feita, a relação entre natureza e cultura demanda a realização de uma interação dos ramos dos direitos culturais e do direito ambiental para que a proteção dos bens culturais e naturais assegurem os valores culturais e o equilíbrio ecológico quando um bem possua essa essência dúplice: cultural e natural, o que é o caso do Encontro das Águas, mas não é o caso dos periquitos de asa branca que possuem apenas o aspecto ecológico e ambiental, mas não o cultural. Além disso, a lei de efeitos concretos não é o meio adequado para proteger o patrimônio cultural [4].
Allan Carlos Moreira Magalhães, Doutor e Pós-doutor em Direito (UNIFOR), professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Dialética - SP)
Notas:
[1] Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
[2] Cf. Projeto de Lei Estadual n. 194, de 2023 que pretende declarar como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Amazonas, o espetáculo dos periquitos de asa branca na Avenida Efigênio Salles. Disponível em: <https://sapl.al.am.leg.br/media/sapl/public/materialegislativa/2023/160348/pl_08731-3.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2023.
[3] UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial. Paris, 2003. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2018.
[4] Cf. CUNHA FILHO, Francisco Humberto; MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. O tombamento legislativo: a lei de efeitos concretos. Revista Direito Ambiental e sociedade, v. 8, n. 2, p. 181-200, 2018. Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/direitoambiental/article/view/5856>. Acesso em: 17 jan. 2019.
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