Conta a mitologia que um ato íntimo entre Poseidon e uma sacerdotisa fez Atenas aplicar o castigo dos deuses para impor respeito ao seu templo, transformando a mulher na mais temida das criaturas: Medusa, uma górgona que assustava todo o Olimpo com as suas serpentes sobre a cabeça, cujo olhar faiscante transformava em pedra quem a mirasse. Pois é! Eis que a mulher, após sofrer este terrível castigo e passar a amedrontar a todos, foi exterminada anos mais tarde por Perseu, também com auxílio divino.
Tal é a situação como é tratado o agente cultural pelos órgãos de controle da Administração Pública em seu mister, especialmente quando recebem incentivos do Estado. Se por um lado, o fomento estatal lhe é garantido, chegando até a ser aprovado pelos órgãos e entidades da Administração Pública, esta e seus órgãos controladores são implacáveis com sanções e entendimentos sem conexão com a realidade, quando inclusive o objeto incentivado foi entregue à comunidade, com o atestado muitas vezes do corpo técnico estatal no processo de prestação de contas.
Existem diversos julgados - especialmente de Tribunais de Contas e órgãos de controle internos que determinam a devolução integral de incentivos, apesar do cumprimento do objeto da parceria. Estes vícios deveriam, no máximo, resultar em aplicação de multa, mas jamais resultar em devolução integral de valores, inclusive atualizados com juros e correções. E as justificativas para tanto: pagamentos fora da vigência, subcontratações, falta de certidões negativas, atraso em prestações de contas (ou mesmo a ausência destas), falta de cotações e outros equívocos de menor gravidade, que, quando não sanáveis, deveriam resultar em multa proporcional, mas não em devolução integral.
Trata-se de cláusula abusiva e de enriquecimento ilícito do Estado. Farta a jurisprudência sobre o tema, mas muitos Tribunais de Contas, por exemplo, seguem à mercê de seus próprios devaneios punitivistas e alheios às determinações judiciais. Aqui uma jurisprudência meramente exemplificativa do Poder Judiciário cearense:
Ementa: Direito Administrativo. Ação de Cobrança. Apelação Cível. Convênio para execução de projeto cultural. Reprovação da prestação de contas. Comprovação do cumprimento do objeto do convênio. Direito à percepção do pagamento estipulado no termo de cooperação financeira nº 325/2014. Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida. I. [...]. A controvérsia em tela cinge-se em analisar se o apelante faz jus ao recebimento do valor pleiteado, referente ao ressarcimento do recurso ofertado em razão de convênio firmado com o recorrido, ante a irregularidade constatada na prestação de contas, a qual foi reprovada sob o fundamento de que o convenente contratou apenas um fornecedor para executar totalmente o objeto do projeto. [...]. Nesse viés, não cabe falar em ressarcimento aos cofres públicos do importe referente ao Termo de Cooperação Financeira nº 325/2014 por prejuízo ao erário, haja vista que os valores disponibilizados foram efetivamente utilizados para a realização do objeto do contrato, sob pena de se estar albergando enriquecimento ilícito ao Estado. V. Recurso de Apelação conhecido e desprovido. Sentença mantida. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acorda a 3ª Câmara Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, por unanimidade dos votos, em conhecer do recurso de apelação, mas para negar-lhe provimento nos termos do voto do Relator. (Processo: 0103442-73.2019.8.06.0001 - Apelação Cível Apelante: Estado do Ceará Apelado: [proponente]. Relator (a): Desembargador Inacio de Alencar Cortez Neto; Comarca: Fortaleza; Órgão julgador: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará; Data do julgamento: 20/07/2020).
Trata-se, portanto, do olhar vingativo de Medusa, que, de tão sedento por justiça e pelo zelo no fazer administrativo a qualquer custo, vai na contramão sobre a consensualidade na Administração Pública, principalmente no tocante ao campo cultural, cujas legislações, ao efetivarem os direitos culturais (CF, art. 215), estão se aprimorando para um olhar mais voltado na execução do objeto, em vez de falhas formais, inclusive trazendo amplos debates para a seara jurídica nesse sentido, a exemplo do princípio da vedação do enriquecimento sem causa para Administração Pública, segurança jurídica, razoabilidade, dentre outros.
Destaca-se, neste ponto, o avanço pontual em diversas legislações que determinam que sequer deve ser solicitada a prestação de contas para parcerias de menor monta quando houver o cumprimento do objeto. Citam-se como exemplos: o art.66 [1], do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei nº 13.019/2014), que, não específica do campo cultural, já trouxe um avanço sobre o tema; e o art. 73 [2], da Lei Orgânica da Cultura do Estado do Ceará (Lei nº 18.012/2022), repetindo as ideias da norma federal. Isso porque a regra deve ser apenas em caso de suspeita de malversação do uso do recurso público ou não cumprimento do objeto para fins de devolução integral do incentivo, e não para as demais questões, como entendem os órgãos de controle, inclusive indo de encontro à jurisprudência.
Mais recentemente, o Tribunal de Contas da União editou a Instrução Normativa nº 91/2022, que institui, no âmbito do TCU, procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal. Um passo!
A ver a aplicação no campo cultural e seus agentes, inclusive a repercussão nos órgãos de controle interno. Aqui vale um último destaque. A própria Lei nº 13.019/2014 já dispõe sobre a possibilidade de em caso de reprovações que a sanção seja a entrega de novo plano de trabalho [3] sem ônus para a Administração, ou seja, no lugar de devolução integral, prestação de serviço cultural para a sociedade. É preciso que urgentemente os órgãos de controle em seus entendimentos e suas análises superem o mero controle de financeiros para o controle de resultados. Afinal, o que importa é a atividade fim, é a consecução dos direitos culturais.
Todas essas leis talvez sejam Perseu tentando conter Medusa para não petrificar e amedrontar ainda mais o campo cultural. Certo que Perseu teve a ajuda de Atenas para destruir o monstro, já que lhe ofertou o seu escudo. Mas foi com tal arma defensiva que Perseu fez com que Medusa se olhasse para cortar-lhe a cabeça. Talvez Atenas arrependida tardiamente da criatura que havia gerado. Tal como Atenas caiu em si, que os órgãos de controle, internos ou externos da Administração Pública, também o façam: ainda há tempo de mudança de postura para com os agentes culturais, inclusive com respaldo na legislação.
André Brayner, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, com atuação científico-jurídica preponderante nos campos relacionados ao Direito Internacional, Direitos Culturais e Terceiro Setor, professor de Direito e Diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Edson Alves da Silva Filho, Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza, Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Direito Administrativo e Tributação (GPDAT) da Universidade de Fortaleza, Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Direito do Terceiro Setor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Advogado
Notas
[1] Art. 66. A prestação de contas relativa à execução do termo de colaboração ou de fomento dar-se-á mediante a análise dos documentos previstos no plano de trabalho, nos termos do inciso IX do art. 22, além dos seguintes relatórios: I - relatório de execução do objeto, elaborado pela organização da sociedade civil, contendo as atividades ou projetos desenvolvidos para o cumprimento do objeto e o comparativo de metas propostas com os resultados alcançados; (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)II - relatório de execução financeira do termo de colaboração ou do termo de fomento, com a descrição das despesas e receitas efetivamente realizadas e sua vinculação com a execução do objeto, na hipótese de descumprimento de metas e resultados estabelecidos no plano de trabalho. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015)
[2] Art.73. A prestação de contas, nos casos de Termo de Execução Cultural, ocorrerá conforme a modalidade aplicável: I - Relatório de Execução do Objeto, apresentado até 60 (sessenta) dias após o fim da vigência do instrumento, nas hipóteses que não se enquadrem no disposto no § 1.º e na hipótese prevista no inciso II do § 2.º; II - Relatório de Execução Financeira, apresentado até 60 (sessenta) dias após o recebimento de notificação específica, nas hipóteses previstas no § 4º deste artigo.
[3] Art. 72. § 2º Quando a prestação de contas for avaliada como irregular, após exaurida a fase recursal, se mantida a decisão, a organização da sociedade civil poderá solicitar autorização para que o ressarcimento ao erário seja promovido por meio de ações compensatórias de interesse público, mediante a apresentação de novo plano de trabalho, conforme o objeto descrito no termo de colaboração ou de fomento e a área de atuação da organização, cuja mensuração econômica será feita a partir do plano de trabalho original, desde que não tenha havido dolo ou fraude e não seja o caso de restituição integral dos recursos. (Incluído pela Lei nº 13.204, de 2015)
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