É bem provável que, ao ler o título deste artigo, a pessoa possuidora de certo gosto por dramaturgia ou por cultura em geral, tenha lembrado da mais famosa fala de Ricardo III, na peça homônima de Shakespeare, ao se ver completamente sem defesas, na derradeira guerra da sua vida e na iminência de ser morto, tal qual já tinha ocorrido com a sua montaria. Referindo-se à vasta e portentosa Inglaterra, o personagem proferiu aquele que foi seu último, insano e inócuo recurso: “meu reino por um cavalo!”. Não adiantou, pois ninguém socorre aos que caem em desgraça irremediável.
A evocação desta passagem da peça me veio à lembrança por causa da novelesca situação de Carlos Alberto Decotelli que, nomeado Ministro da Educação do Brasil, em 25 junho de 2020, cinco dias depois viu tal ato ser tornado sem efeito, porque descobriram que suas anotações curriculares de ser doutor e pós-doutor eram falsas; adicionalmente, denunciaram que o seu mestrado teria sido obtido a partir de plágio, acusação esta que está sendo objeto de apuração pela Fundação Getúlio Vargas.
Portanto, montarias para o último monarca da estirpe dos plantagenetas e os títulos para o (des)investido ministro representavam instrumentos de ascensão ao poder. Todavia, cavalos mortos e diplomas falsos devem, e neste específico caso produziram o efeito de defenestrar os autoproclamados rei e acadêmico, respectivamente, das funções que, por diferentes métodos, haviam de alguma forma usurpado.
O episódio brasileiro, que tornou-se ruidoso por causa do cargo a ser ocupado, não é o único e se faz acompanhar por tantos outros, que foram desconsiderados por serem avaliados como fanfarronice de políticos que vão a importantes universidades estrangeiras, folheiam algo em sua biblioteca ou fazem selfies em sua fachada e disso já se creditam como titulados pela referida instituição.
De fato, este evento adverte para a grande profundidade na qual estão fincadas as raízes bacharelescas no Brasil, em que o diploma vale muito; vale tanto que, não raro, se sobrepõe ao efetivo saber e, por isso, para sua obtenção, são flagradas muitas estratégias de compra, venda e burlas de toda natureza, como as aqui referidas.
O próprio campo cultural sucumbe à tentação gerada pelos diplomas acadêmicos, com atos que ao invés de reivindicarem a paridade de valoração dos méritos e das expertises por ele próprio construídos, coloca em suas pautas demanda de reconhecimentos universitário para aquilo que fazem, adotando por conseguinte, uma postura subalterna e reafirmando uma hierarquia superior para o que as Universidades definem e consideram como conhecimento.
A meta 17 do Plano Nacional de Cultura (PNC), por exemplo, impõe às autoridades responsáveis que, durante a sua vigência decenal, prestes a expirar, viabilizem “20 mil trabalhadores da cultura com saberes reconhecidos e certificados pelo Ministério da Educação (MEC)”. Para que não haja dúvida sobre a quem se direcionada a almejada certificação, basta que se confira o documento oficial constante no link acima indicado, no qual a motivação para obtê-la se vincula à crença de que “a certificação profissional promove a produtividade e atua na inclusão social e profissional” e de que por ela serão beneficiados, “por exemplo, mestres da cultura popular e tradicional, como artesãos, rendeiras e tocadores de tambor”, os quais, “depois de certificados, poderão ser chamados a ensinar seus conhecimentos nas escolas”.
A rigor, se os construtores do PNC tivessem pensado na autonomia do campo cultural, a demanda mais adequada seria pelo reconhecimento estatal de certificação específica das instâncias de consagração interna a cada setor ou, quando muito, deveriam ter reivindicado por atos de homologação das expertise neles obtidas, mas não por um ministério alheio, e sim pelo próprio Ministério da Cultura ou órgão que lhe faça as vezes.
O saber acadêmico é importantíssimo, imprescindível até, por isso precisa ser protegido contra todo tipo de falsificação e obtenção por aqueles que não demonstrem méritos para tanto. Por outro lado, não deve ser o único canal possível para a certificação de todos os tipos de conhecimentos, como tantos que existem no universo da cultura, para os quais se deve lutar, clara e abertamente, no sentido de se obter similares níveis de valor e de eficácia no seio social.
Para dizer o mínimo, é pouco inteligente trocar um reino tão rico e vasto, como o da cultura, por um diploma.
Humberto Cunha Filho
Doutor em Direito e Professor de Direitos Culturais na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”.
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