Toda guerra, antes do uso de armas, é cultural. Aquele que quer atacar precisa de um pretexto para justificar tal atitude, o que significa buscar algo que legitime primeiramente combater o mal que julga existir nos que são objeto de sua fúria, com o firme propósito de que, se persistir, faz-se necessário eliminar as próprias pessoas dele acometidas.
Os mais frequentes e constantes motivos para a guerra cultural são as diferenças de valores e costumes, em face dos quais o atacante busca impor a sua moral e as suas práticas, bem como eliminar o que chama de barbárie, conceito cuja fragilidade é evidenciada pela arguta observação de Claude Lévi-Strauss, para quem “cada um chama de barbárie o que não é do seu costume”.
A história parece corroborar esse entendimento, quando exibe que a queima dos livros antecede a carbonização das pessoas, o sufocamento de línguas e culturas precede a escravização e o extermínio de povos, entre outros.
Quem tem noção das premissas acima expostas, apesar da imensurável indignação, sabe que em situações como a inaceitável invasão golpista dos prédios dos Três Poderes da República brasileira, ocorrido no oitavo dia de 2023, destruir o patrimônio cultural não é um plus e muito menos um requinte do vilipêndio. É uma condição prévia, consistente na morte simbólica da alma de quem subsequentemente, segundo eles, se não houver conversão, precisa ser fisicamente eliminado.
No âmbito da normatividade das instituições culturais, extrai-se do preâmbulo da Constituição da Unesco, datada de 16 de novembro de 1945, a consciência de “que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz”, sendo o mais adequado instrumental, para tanto, a “ampla difusão da cultura, e da educação”, isto porque o espírito belicoso decorre “da ignorância e do preconceito, [e] da doutrina da desigualdade entre homens e raças”.
Efetivamente, a falta de difusão do patrimônio cultural e a ignorância relativamente a ele agravaram sobremaneira os atos de destruição dos golpistas, o que fica muito evidente a partir do tratamento conferido a dois objetos: a réplica da Constituição de 1988, protegida e devolvida intacta por um dos invasores, e o relógio doado a D. João VI, reduzido a frangalhos.
Esta rápida lembrança induz a se pensar a razão pela qual os dois objetos mencionados tiveram sinas opostas. A hipótese mais plausível está exatamente nos conceitos de difusão e ignorância do patrimônio cultural: a Constituição é de todos conhecida, razão pela qual torna-se intuitivo perceber que um exemplar comemorativo tem valor.
Quanto ao relógio, se soubessem que ele tinha sido produzido na Corte de um monarca fundador do moderno estado totalitário, Luís XIV, contrário às ideias de separação dos poderes e de diversidade, provavelmente, ao invés de tê-lo destruído, o teriam tomado como troféu da sua malsinada causa autoritária.
A urgência da situação efetivamente demanda que as forças democráticas sejam canalizadas, em sua máxima potência, para a manutenção do regime de governo baseado na igualdade de todos. Porém, nada obsta que no tempo devido (e que não demore muito), se rediscuta o sistema de salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, para que ele fique de acordo com o que determina a Constituição, tão legítima, a ponto de ser protegida por quem menos se espera.
Essa demanda se impõe porque, apesar do que dispõe a Carta Magna de 1988, as práticas patrimonialistas ainda se espelham em legislações autoritárias, políticas aristocráticas, opções apartadoras ou invés de promotoras da transculturalidade, dentre outras mazelas de quem, mesmo involuntariamente e por ignorância, faz uso da cultura para alimentar a guerra, quando deveria promover a paz.
Mas esses são tópicos para desenvolvimento futuro...
Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Presidente de Honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), Comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral (IODA). Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).
Referências:
LÉVI-STRAUSS, Claude. Somos todos canibais. São Paulo: Editora 34, 2022.
UNESCO. Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Adotada em Londres, em 16 de novembro de 1945, e emendada pela C o n f e r ê n c i a G e r a l nas suas 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª, 9ª, 10ª, 12ª, 15ª, 17ª, 19ª, 20ª, 21ª, 24ª, 25ª, 26ª, 27ª, 28 ª e 2 9 ª s e s s õ e s. 2002. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000147273?posInSet=1&queryId=c210a0f4-f161-49d8-afa4-278dea86f21a . Acesso em: 15 jan 2023.
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