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A busca e a preservação de uma memória histórica, que reconecta a identidade passada com a presente, faz parte da longa construção de narrativas pelo ser humano. Nesse contexto, o desejo de conhecer as próprias raízes, de reconstruir a própria árvore genealógica e até de visitar lugares onde viveram os antepassados é um fenômeno que vem ganhando força no mundo ocidental. Afinal, nada mais legítimo que desvendar antigas narrativas familiares que inserem o indivíduo no seio de um coletivo histórico distante e o fazem compreender o seu presente.
Nessa ótica, um verdadeiro mercado vem sendo desenvolvido para possibilitar esse sonho de restauração de laços passados com o presente. O mecanismo inicial mais frequente é a busca documental para rastreamento da árvore genealógica. Algumas instituições, por exemplo, criaram aplicativos especializados para esse fim, fornecendo significativo banco de dados, que concede a usuários-amadores informações e documentos, facilitando a busca genealógica de antigos familiares.
O mais famoso é o FamilySearch, um aplicativo gratuito, desenvolvido pela igreja americana “Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, sob o mote “inspirar pessoas em todos os lugares a se conectarem com sua família — por gerações”, fornece um enorme banco de dados com documentos desde o século XIX, além de possibilitar a troca de informações e mensagens entre parentes distantes da mesma genealogia.
O material registra inúmeros documentos de nascimento, óbito, batismo e casamento, desde 1809 ao início do século XX [1], a maior parte relativa a imigrantes europeus nos Estados Unidos. De forma semelhante, mas mediante pagamento, existem o Ancestry [2] e o MyHeritage [3] que, além de pesquisa em banco de dados, permitem também a construção da árvore genealógica completa, contendo fotos e documentos importantes. Esses aplicativos também comercializam kits online para a realização de exames de DNA.
Outras instituições, por outro lado, preferiram investir num segmento do mercado do turismo que se enquadra perfeitamente nessa tendência de busca histórica. Chamado de “turismo das raízes”, “turismo genealógico”, “turismo de retorno” ou, ainda, de “história familiar”, a ideia teve início na Irlanda, mas, logo em seguida, empresas com sede na Alemanha, Polônia, Grécia, Escandinávia e Holanda deram seguimento à ideia, com o projeto “Routes to the Roots”, no período de 1993-1996, buscando satisfazer a forte demanda identitária de seus cidadãos expatriados [4] .
Trata-se de um turismo específico, desenvolvido por países marcados pela emigração em massa ocorrida nos séculos XIX e XX, que visa atrair descendentes desses imigrantes de origem europeia que querem se reconectar com os locais de origem de seus ancestrais.
Recentemente, ciente das oportunidades econômicas oferecidas por sua enorme população em diáspora, a Itália determinou que 2024 será o ano do Turismo delle Radici. Com o lançamento do edital do programa, no valor de € 20 milhões, financiado pelo Programa Nacional de Recuperação e Resiliência (plano financiado pela Comunidade Europeia para relançar a economia italiana após a pandemia de Covid-19) [5], o Ministério da Cultura, juntamente com o Ministério dos Assuntos Exteriores italianos, buscam o desenvolvimento de projetos que ofertem diversas iniciativas culturais turísticas dirigidas aos descendentes de italianos no mundo (estimados em cerca de 80 milhões) [6].
O potencial desses projetos, como explicado por Giovanni Maria De Vita [7], coordenador do “Turismo das raízes” do governo italiano, é dar uma oportunidade a pequenos territórios italianos, normalmente ignorados pelo turismo mainstream (especialmente considerando-se que a grande emigração teve origem em pequenas aldeias e não em grandes cidades) e, acima de tudo, criar uma relação entre as comunidades italianas no exterior e a Itália. Segundo De Vita, “os turistas das raízes têm uma característica diversa dos demais, pois podem voltar com outros e decidir comprar uma casa, morar na Itália ou se estabelecer lá (...)”.
Conhecer e descobrir o passado, as tradições e o lugar de origem de antepassados é, sem dúvida, uma busca humana de fundamental importância, pois permite resgatar a história e identidade pessoais e valorizar a própria dignidade individual. Contudo, tal turismo pode ser uma excelente oportunidade não somente para o turista, mas principalmente para o país que o estimula.
No caso da Itália, país que vive uma crise demográfica, esse projeto pode significar o início da solução desse problema, ao possibilitar o conhecimento de seu grande patrimônio pelos descendentes de imigrantes italianos espalhados pelo mundo, o que pode fazer uma grande diferença no futuro da própria Itália.
Anita Mattes, Doutora pela Université Paris-Saclay, Mestre pela Université Panthéon-Sorbone, Professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, Conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
Notas
[1]Para mais informações: https://www.familysearch.org.
[4] Enrico CAPUTO, Linee guida per lo sviluppo di progetti di turismo genealogico, Ed. Società Filosofica Friulana, 2016.
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