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Despolíticas da memória: as patrimonializações legislativas



Gols do jogador Zico no estádio do Maracanã foram registrados pela Prefeitura do Rio


De bem-intencionados o Inferno está cheio, diz o dito popular. Tombar ou registrar bens culturais através do Legislativo, como se tem visto por aí, é uma maneira eficaz de povoar ainda mais a morada do sete-peles. Explico: os inventários participativos, tanto no caso de um bem material quanto de um imaterial, são literalmente escanteados com essas medidas.


Além disso, no caso de um tombamento por Projeto de Lei, por exemplo, como possibilitar que o proprietário se manifeste, após ser notificado, como só ocorre no procedimento administrativo? Onde andará o contraditório e a ampla defesa, caros ao devido processo e a todo Estado de Direito? O tombamento provisório, para continuar nesse exemplo, só tem início com a ciência do proprietário.


Logo, serve somente às pretensões de vereadores/as, deputados/as estaduais ou congressistas federais para promoverem-se, através de um reconhecimento cujos efeitos jurídicos são praticamente nulos na busca desse reconhecimento.


Muito embora o Supremo Tribunal Federal já tenha reconhecido essa possibilidade quanto ao tombamento, o mesmo indica que tal ato apenas determina que o Poder Executivo inicie o procedimento de sua competência. Quanto ao registro, fico aqui a me perguntar qual o efeito, afora o político-partidário, de tal feito. Vejamos um exemplo:


Os gols do jogador Zico, realizados no estádio do Maracanã, foram registrados pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro por conta de sua importância cultural para a cidade, "como Forma de Expressão da sociedade carioca". Ainda que o Decreto 37234/2013, em seu artigo 2º, disponha que "o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade será responsável pelos trabalhos técnicos com fins de realização dos estudos, pesquisas e inventários necessários à efetivação do registro e inscrição no livro das formas de expressão", qual o tipo de participação popular houve nesse processo?


As metodologias previstas no Inventário Nacional de Referências Culturais foram base para o projeto que culminou nesta lei? Os outros gols não são referências? Se o próprio decreto já se remete aos estudos e pesquisas, bem como ao inventário, instrumentos a serem executados durante o procedimento administrativo, não seria só palanque o registro legislativo?


Segundo a legislação carioca que regulamenta o registro de bens imateriais daquela cidade (Decreto nº 23.162, de 21 de julho de 2003), em seu artigo 4.º, "as propostas para registro serão dirigidas ao órgão executivo municipal do patrimônio cultural que, após análise técnica, as submeterá ao Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural"; e no § 1.º que "a instrução dos processos de registro será supervisionada pelo órgão executivo do patrimônio cultural". Logo, o processo é administrativo, é do Executivo, muito embora não haja proibição pelo ordenamento jurídico brasileiro para que os outros poderes tratem do tema. E esse é só um dentre vários exemplos pelo país.


Cabe afirmar que não é o Legislativo ou o Executivo, tampouco o Judiciário, que legitimam ou validam um patrimônio. É a comunidade que o vive, o sente, o goza. Mas a sua institucionalização não pode ficar à mercê de manobras político-partidárias, da coloração partidária que for, do ente federativo que for, que buscam nada diferentemente do que ampliação de seu eleitorado. E o fazem próximo às datas de pleitos eleitorais ou em sua preparação. Em todo Brasil.

* Yussef Campos, historiador, professor da Universidade Federal de Goiás e articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais

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