Loja de venda de “artesanato” produzido em escala, situada no litoral oeste do Ceará. (Foto do articulista)
Em “Política e Cultura”, Norberto Bobbio propõe importante diferença entre “a política da cultura, como política dos homens [e das mulheres] de cultura em defesa das condições de existência e de desenvolvimento da cultura” e “política cultural, ou seja, à planificação da cultura por parte dos políticos” [1]. A primeira, portanto, é preponderantemente social, e a outra, consideravelmente estatal.
Entre nós, em termos de planejamento cultural, a Constituição Brasileira, que se rege pela determinação de que o Estado é o ‘garantidor’ dos direitos culturais (Art. 215), foi alterada (2005) para incluir que “a lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual”, visando dois objetivos principais: “o desenvolvimento cultural do País” e a “integração das ações do poder público” [2] na seara, para atingir “metas”, cujos conteúdos matriciais serão vistos mais adiante.
Entender o que os constituintes reformadores almejam com o PNC não é algo simples, por causa de barreiras (provavelmente involuntárias) propostas para o Plano, a começar pelo significado da expressão “desenvolvimento cultural do país”, conceito considerado por Teixeira Coelho como “altamente polêmico”, pois se for percebido no sentido de “ampliar quantitativamente a área de influência da cultura erudita, as demais culturas correm o risco de verem-se cerceadas. Se, por outro lado, por desenvolvimento designa-se um desdobramento da produção cultural graças a financiamentos, equipamentos e edificações, o perigo está no privilegiamento do que se considera a casca da questão cultural em detrimento de seu fulcro, a prática cultural propriamente dita” [3].
O mesmo autor vislumbra que o sentido remanescente “na expressão ‘desenvolvimento cultural’ é o fato de relacionar-se com um aumento quantitativo da produção e do consumo cultural que pode ser medido em números sem que seja possível avaliar com tranquilidade em que isso contribui para a dinâmica cultural total” [4].
De fato, a segunda e última aparição da perturbadora expressão na Constituição de 1988, a associa à faceta capitalista das atividades culturais, precisamente quando, no Art. 219, estabelece que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o ‘desenvolvimento cultural’ e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal” [5].
Também não deixa de provocar reflexões o objetivo da “integração das ações do poder público”, porque, segundo o Dicionário Oxford [6], integrar significa “incluir um elemento num conjunto, formando um todo coerente” ou “adaptar algo a um grupo”. Aqui, o cuidado é para que a ideia de integração não aniquile ou prejudique a diversidade, alimentada em uma federação, como é o caso do Brasil, precisamente pelas diferentes formas com que a expressão cultural se apresenta, tanto em suas manifestações quanto nos métodos de organização e financiamento.
Sob tais dificuldades e cautelas, em termos constitucionais, as metas a serem inseridas nos planos culturais devem ter conexão com a “defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; produção, promoção e difusão de bens culturais; formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; democratização do acesso aos bens de cultura; e valorização da diversidade étnica e regional” [7].
Se bem observada, a dimensão constitucional do PNC praticamente repete, ainda que de forma mais imprecisa, elementos que constam na Constituição Federal desde seu texto originário, acentuadamente nos incisos III a V do Art. 23, de acordo com os quais, “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos; impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; proporcionar os meios de acesso à cultura [...]” [8].
A única novidade da Emenda do PNC, relativamente ao que já havia na Constituição, portanto, refere-se a uma atividade-meio, que é a “formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões”, o que mais uma vez indica um caminho secundário a ser percorrido pelo Plano Nacional de Cultura e seus congêneres estaduais e municipais, considerando a determinação de que “constitui a estrutura do Sistema Nacional de Cultura, nas respectivas esferas da Federação”, dentre tantos outros elementos, os “planos de cultura” [9].
É nítido que as ideias de “desenvolvimento cultural do país” e “integração das ações do poder público”, conforme acima localizadas, são desejavelmente aplicáveis à faceta daquilo que se conhece por indústria cultural, cuja lógica de funcionamento é reconhecidamente amigável às regras da economia, porém, potencialmente inadequadas, em distintos graus, a outros segmentos culturais, sobremodo aqueles cuja função social está exatamente em estimular o comedimento de mudanças e em lembrar nossas responsabilidades relativamente às tradições. Evidenciar esses problemas não pode levar à conclusão de que o setor cultural seja infenso aos planejamentos, de modo algum, porém, que demanda, para tanto, percepções e métricas próprias, que necessariamente são variáveis de um segmento a outro.
Como então interpretar os objetivos constitucionais atribuídos ao PNC, considerando o dogma jurídico de que a Constituição não possui palavras inúteis? A resposta pode vir do próprio bloco de constitucionalidade, ou seja, de normas que mesmo não estando na Lei Maior, dela fazem parte, como é o caso dos documentos internacionais, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu todo direcionada à “paz”, e especificamente, no que concerne aos direitos culturais, programada para que cada ser humano construa a sua “dignidade”, bem como o “livre desenvolvimento da sua personalidade”, para o que deve contar com o “esforço nacional” e a “cooperação internacional” (Art. 22) [10].
Conclusivamente, diversidade, paz, dignidade humana, desenvolvimento da personalidade, esforço coletivo e cooperação transfronteiriça são expressões que indicam fundamentos, valores e fins para a construção dos planos de cultura, cujas metas desenvolvimentistas podem ter variações extremas de uma localidade a outra, só podendo ser legitimamente traçadas no ambiente em que se possa “participar livremente da vida cultural da comunidade” [11].
Francisco Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP)
Notas:
[1] BOBBIO, N. Política e Cultura. São Paulo: Ed. UNESP, 2015, p. 91.
[2] BRASIL. Online: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[3] TEIXEIRA COELHO. Dicionário Crítico de Política Cultural: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2012.
[4] Idem.
[5] Ver nota de rodapé nº 2.
[6] Online: https://acesse.one/DyT6k
[7] Ver nota de rodapé nº 2: Art. 215, § 3º.
[8] Ver nota de rodapé nº 2.
[9] Ver nota de rodapé nº 2: Art. 216-A, § 2º, v.
[10] Online: https://encr.pw/3h3P4
[11] Ver nota de rodapé nº 10.
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