*Imagem: Henry Kellner; CC BY
A pandemia de Covid-19 está exigindo de lideranças e administrações não somente a gestão imediata de questões ligadas à emergência sanitária, mas também a necessidade de pensar, de forma estrutural e sistêmica, em novas soluções para o enfrentamento pós-pandemia. Nesse contexto, uma discussão que está surgindo, principalmente na Europa, é a necessidade de se repensar o sistema cultural que queremos para o futuro e de possibilitar uma cultura que impulsione a mudança social, por meio da construção de novos imaginários e de novas organizações, proporcionando um viver de qualidade, equitativo e inclusivo.
Todavia, teria a cultura fôlego para um papel real na realização de um projeto de desenvolvimento sustentável?
A Unesco, na última década, defendeu uma agenda baseada na cultura para o desenvolvimento. Essa proposta culminou na publicação do documento Culture / 2030 Indicators (1), na ocasião do Fórum de Ministros da Cultura, em novembro de 2019, na sede da Unesco, em Paris. A iniciativa é um esforço para estabelecer uma metodologia – mediante a utilização de 22 indicadores da cultura (qualitativo-quantitativos, econômicos, educacionais e outros) -, para tornar mais visível o papel transversal da cultura no desenvolvimento de nações, assim como de pequenas cidades. A ideia objetiva contribuir para a viabilização de políticas e decisões, bem como ações operacionais, permitindo a obtenção de maiores investimentos na cultura como setor desencadeador de atividade e um maior reconhecimento do seu papel transversal nos demais setores, ou seja, de sua capacidade de construção da realidade social e da consciência sobre os direitos e responsabilidades individuais e coletivos.
De fato, é preciso reconhecer que a Unesco sempre acreditou que a cultura é um vetor importante para o desenvolvimento de outros setores, incluindo o crescimento econômico, a redução das desigualdades, a proteção do meio ambiente e do patrimônio cultural material e imaterial, além da promoção da igualdade de gênero, inovação e criação de sociedades pacíficas e inclusivas. Trata-se das cinco dimensões críticas do desenvolvimento sustentável: “Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz, Parcerias”. (2) Nitidamente, para essa instituição internacional, o papel da cultura deve ser entendido tanto como um impulsionador que contribui diretamente para benefícios econômicos e sociais, quanto como um facilitador para uma maior eficácia das intervenções de desenvolvimento sustentável.
É importante destacar que alguns desses indicadores, v.g. a educação, podem ser alcançados de forma mais eficaz por meio da cultura. Por outro lado, num período pós-pandemia, de recursos escassos e necessidades vitais mais urgentes (como o enfrentamento do aumento da miséria e da fome em nações impactadas pela pandemia), considerar a cultura uma contribuição real para o desenvolvimento sustentável poderia, talvez, ser visto como uma ideia um tanto fora de contexto.
Contudo, alguns pequenos borgos históricos italianos já estão acreditando nessa proposta e investindo na ideia de desenvolvimento de seu patrimônio cultural, material e imaterial, como forma de revitalização e desenvolvimento de seus territórios e de busca de um desenvolvimento mais sustentável e alternativo. Corenno Plinio, uma esplêndida cidadezinha medieval situada no Lago de Como, no norte da Itália, é exemplo dessa iniciativa.
Tudo começou mesmo antes da crise epidemiológica, durante a campanha eleitoral do prefeito da cidade, Stefano Cassinelli, que investiu no projeto “Aldeia dos mil passos”, estabelecendo o acesso à cidade mediante pagamento. O valor da entrada, ainda a ser definido, seria por volta de € 2 por pessoa, ou seja, o mesmo valor que as demais estruturas turísticas da região. Tal iniciativa, ainda em construção, quando noticiada nos jornais italianos, causou grande polêmica. Apesar disso, segundo o prefeito Cassinelli, o intuito não seria somente arrecadar dinheiro para “reconstruir Corenno, cujas origens remontam, em certos documentos, à época romana, resultando numa rica herança medieval que está se perdendo”. (3) Mas, principalmente, não estimular um “turismo de massa”, transformando Corenno Plinio em uma espécie de museu a céu aberto, com percursos temáticos, formação de guias especializados e ainda tour virtual. Tudo isso de forma a que o turismo não modifique a estrutura urbana histórica e social do borgo.
A cidade ainda tem sido também objeto de intervenções de requalificação pelos próprios moradores. A partir dos direitos e das necessidades dos trabalhadores e das famílias que ali vivem, organizou-se, entre os próprios moradores, uma espécie de comitê – Comitato del Borgo – que visa, a partir da participação territorial direta, a encontrar novas soluções conjuntas para o desenvolvimento social e econômico de Corenno Plinio, mas, principalmente, cultural. Essa iniciativa busca uma nova abordagem da comunidade, ao colocar seus interesses em primeiro lugar: criar um elo direto entre o cidadão e a administração, organizar atividades de convivência (como festas e eventos), redescobrir o território, assim como cuidar dos problemas comuns dos moradores para melhorar a qualidade de vida na pequena cidade.
O modelo de regeneração desses pequenos centros históricos deve, então, poder se desenvolver como um laboratório dinâmico, envolvendo vários sujeitos: empresas privadas, arquitetos, operadores culturais, comerciantes, investidores e, acima de tudo, a própria população que se dedica ao cuidado do território, zelando pelas suas próprias estruturas, protegendo o meio ambiente e o patrimônio cultural. Nesse ano, apesar de a pandemia ainda estar em curso, o Comitato já prevê a organização de mais de 7 ações culturais no território, incluindo uma feira típica tradicional medieval, com venda de alimentos típicos, festival de música e exposições artísticas.
A partir dessa constatação, o projeto pretende reaproveitar o patrimônio cultural como um ativador de valores culturais, econômicos, sociais e ecológicos, criando, assim um modelo social que visa maior sustentabilidade e resiliência.
Corenno Plinio, singela na sua dimensão, está fazendo parte desse processo de mudança e poderá servir de modelo, quando a pandemia for apenas uma triste memória (o que esperamos que aconteça em breve), de turismo alternativo, bem como de novas formas sociais de participação comunitária, permitindo o desenvolvimento de centros históricos esquecidos e degradados.
*Anita Mattes, advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, Cultore della materia na Università Bicocca em Milão, doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbonne, pesquisadora do Centre d’Étude et de Recherche en Droit de l’Immatériel (CERDI/Saclay) e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)
(1) Documento disponível neste link.
(2) Culture 2030 Indicators, UNESCO, 2019, p. 13 e seguintes.
(3) Conforme entrevista telefônica realizada em fevereiro/2021.
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