Nos programas políticos dos presidenciáveis, o bolo da cultura ainda continua quente. Os sabores são múltiplos e dispersos. Até quando se apresentam tópicos, não são, muitas vezes, delineados de forma conectada com as demais propostas e diretrizes culturais. Continuemos com a nossa atenção fragmentada. (Confiram a Parte 1)
Cultura e administração pública federal
Desde o início do governo Temer, com a ocupação dos prédios que abrigam as principais autarquias e fundações federais do campo cultural em protesto contra a tentativa de rebaixamento do status de Ministério do MinC, vários segmentos sociais, desde servidores organizados a artistas e produtores, têm denunciado o assédio institucional sofrido pelas instituições federais ligadas à área. O fim do Ministério da Cultura, durante o começo do governo Bolsonaro, foi o ápice estrutural e simbólico do comprometimento da autonomia conferida pela Constituição Federal de 1988 à cultura.
Candidaturas, como a de Simone Tebet (MDB), prometem que a Cultura “voltará a ser tratada com o status, a atenção e a importância que merece” [1]. Tanto ela quanto Ciro Gomes (PDT) e Pablo Marçal (PROS) preveem expressamente em suas propostas a recriação do Ministério da Cultura. Genericamente, a carta compromisso de Lula da Silva (PT) defende o “fortalecimento das instituições culturais” [2], reconhecendo que, no atual governo, as áreas da Educação, Ciência, Tecnologia e Cultura sofreram contingência de recursos e a falta de investimentos, mas, no caso da área cultural, sendo “perseguida e até criminalizada”.
Felipe D’Ávila (Novo) não fala em recriação do MinC, mas em ponte entre a atual Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo com o Ministério da Educação, a fim de incluir a sociedade “no processo de produção e consumo de bens culturais por meio da educação” [3].
Para a Fundação Nacional das Artes (Funarte), palco juntamente com a Fundação Palmares das denúncias de tentativa de inoperância de suas competências com a instrumentalização da troca de gestores e a asserção da guerra cultural do conservadorismo de extrema-direita, há uma única proposta. Curiosamente, a candidata Soraya Thronicke (UB), alinhada anteriormente com o presidente da República, Jair Bolsonaro, promete “fortalecer a Funarte, ampliando sua atuação em todo território nacional” [4].
À esquerda, em suas propostas por direitos iguais, fim da discriminação e do racismo, Léo Péricles (UP) enfatiza a “recuperação e fortalecimento” da Fundação Palmares [5] para reconhecimento dos territórios quilombolas. Sabe-se que o ex-gestor da fundação Sérgio Camargo, nomeado por Bolsonaro, tem um histórico de conflitos com os movimentos negros e que os complexos processos de certificação dos territórios quilombolas, envolvendo inclusive outras instituições como o Incra, estão paralisados.
O candidato do Novo, Felipe D’Ávila, menciona a criação de um Conselho Nacional de Cultura, aberto a todos, com representantes nacionais e internacionais, à semelhança de uma entidade regulatória, sendo que com “características autorregulatórias” [6], o que sugere uma abordagem liberal da proposta. O órgão colegiado teria competências para elaborar planos plurianuais, elaborados, avaliados e monitorados a partir de indicadores e “por um sistema próprio de verificação”. Programas sem desempenho mínimo seriam descontinuados.
A proposta chama a atenção porque, de fato, já existe o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), que integra a estrutura básica do Sistema Nacional de Cultura, de acordo com a Emenda Constitucional nº 71/2012 [7]. O órgão colegiado é composto por representantes de órgãos e ministérios da União, representantes dos poderes públicos dos Estados, Municípios e Distrito Federal, e da sociedade civil, no caso dos últimos, oriundos das diversas expressões culturais brasileiras.
De outro modo, o campo cultural é autônomo, sendo sua capacidade organizativa livre em diversas áreas. Uma visão autorregulatória, em regra, significa uma abstenção do Estado, seja com inexistência de normas ou de órgãos reguladores voltados a um setor, ou seja, a proposta parece num primeiro momento contraditória quando promete criar um órgão; sem esquecer que um dos papéis do Estado brasileiro na cultura é de fomentador e apoiador às iniciativas culturais da sociedade.
Além disso, a maneira pela qual os planos de Cultura são construídos, nas últimas décadas, envolve as esferas federadas em torno das conferências de Cultura, bem mais amplas e participativas que o próprio CNPC. Ainda nesse ponto, vale dizer que a lei que instituiu o Plano Nacional de Cultura também criou um Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais com o objetivo de fornecer dados para planejar, monitorar, avaliar e aperfeiçoar políticas culturais, bem como para a adoção de mecanismos de indução e regulação da atividade econômica no campo cultural.
Cultura e liberdade
Segundo o Mapa da Censura do Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (Mobile), entre dezembro de 2020 e janeiro de 2022, foram identificados mais de 170 casos denunciando violação da liberdade de expressão artística e de outras liberdades culturais [8], em parte episódios iniciados a partir da atual gestão do governo federal. Tanto à esquerda quanto à direita, o tema da liberdade aparece nas propostas de alguns candidatos com visões muito distintas sobre a acepção desse direito.
Vera Lúcia (PSTU) defende “a mais plena liberdade de criação cultural”, com a palavra de ordem “Abaixo todos os tipos de censura!” [9]. Lula da Silva (PT) destaca o “compromisso com os direitos humanos, a cultura e o reconhecimento da diversidade” que garanta o direito “à liberdade, à memória e à verdade” [10]. O direito à cultura, como visto na primeira parte deste artigo, é vinculado como garantidor da “plena liberdade artística” nas diretrizes do petista.
No programa de Felipe D’Ávila (Novo), as propostas de política pública de cultura estão atreladas ao “conceito de liberdade” tecido na “economia de livre mercado para criar trabalho e riqueza” [11]. Embora haja a defesa autorregulatória do livre mercado para o campo cultural, o candidato do Novo sustenta a ideia do federalismo cooperativo no qual a União teria o papel de articular um modelo descentralizado de execução da política cultural. Assim também, pretende apoiar-se em políticas baseadas “no conceito de desconcentração da renúncia fiscal entre os entes federativos”, de certa maneira incorporando críticas dirigidas à assimetria da distribuição regional dos projetos e programas apoiados via Lei Rouanet. No entanto, não deixa muito clara a sua pretensão de “execução delegada à sociedade civil” das políticas públicas culturais.
Por fim, com a vagueza da generalidade da proposta, Soraya Thronicke (UB) propõe a regulamentação do Sistema Brasileiro de Cultura, não explicando do que se trata, se esse sistema se aproxima ou difere do Sistema Nacional de Cultura.
Patrimônio cultural e memória
Um velho conhecido das políticas culturais, importante na tal construção da identidade nacional, não figura tão proeminente nas plataformas dos candidatos, muito embora continue a ser eventualmente mobilizado para o termômetro quem é mais ou menos patriota nos discursos políticos. Lula da Silva (PT), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) citam a valorização do patrimônio histórico como diretriz de campanha. Leo Péricles (UP) almeja instituir “Política de reparação histórica e cultural, alterando nome de ruas, monumentos que cultuam figuras de escravistas, ditadores e genocidas”, para “nomes de heróis explorados e oprimidos.”, ao lado da garantia do ensino de história da cultura afro-brasileira. Sofia Manzano (PCB) ressalta igualmente a importância da abertura e do acesso a arquivos do Estado brasileiro sobre os períodos da escravidão, os regimes ditatoriais e os genocídios da população negra e dos povos originários, na garantia do direito à memória e à verdade.
No tópico do programa de Felipe D’Ávila (Novo) para a Cultura, há uma proposta específica apenas para o chamado patrimônio natural, destacando o seu “aproveitamento econômico para fins de turismo e lazer” para contribuir com “o desenvolvimento territorial, a começar pelo Zoneamento Ecológico Econômico do território nacional.”
Espaços culturais e acessibilidade para pessoas com deficiência
Nas candidaturas de esquerda de Sofia Manzano (PCB) e Vera Lúcia (PSTU), há a previsão do desenvolvimento de uma política de construção de espaços culturais em regiões populares. A primeira inclusive fala em acessibilidade arquitetônica desses lugares para pessoas com deficiência. Nas diretrizes do candidato Lula da Silva (PT), o acesso à Cultura de pessoas com deficiência é colocado como meta. De maneira semelhante, Simone Tebet (MDB) pretende assegurar “acesso a bens culturais em formatos acessíveis”.
Povos originários e quilombolas
Os direitos culturais dos povos originários e quilombolas também são alvo de atenção por parte dos programas dos candidatos, apesar de pouco presentes nos debates políticos das candidaturas. Nas propostas dos candidatos Léo Péricles (UP), Sofia Manzano (PCB) e Vera Lúcia (PSTU), a defesa da cultura desses sujeitos coletivos de direitos passa necessariamente pela demarcação e titulação de suas terras, de acordo com o previsto na Constituição Federal de 1988. A candidata do PSTU defende que haja reparação histórica aos povos originários.
O candidato Ciro Gomes (PDT) tem como linha a preservação e o respeito às reservas territoriais indígenas, porém não menciona quilombolas ou comunidades tradicionais. Lula da Silva (PT) também se filia à diretriz da proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e de populações tradicionais.
Felipe D’Ávila (Novo), aparentemente, segue o mesmo entendimento com a defesa dos “direitos de propriedade para os povos indígenas”, porém com “revisão da legislação”, sem dizer qual seria a proposta de mudança, apenas elencando pressupostos como especificidades culturais e inclusão econômica. Particularmente, cita o fortalecimento da Funai e dos órgãos do Ministério da Justiça e Segurança Pública para combate de atividades ilegais em territórios indígenas. Os quilombolas não são citados na sua plataforma.
Para o programa da presidenciável Soraya Thronicke (UB), “O Brasil foi descoberto em 1500 e até hoje nenhum governo conseguiu olhar para o território e fazer um planejamento de distribuição capaz de compor os interesses de todos os brasileiros” [12]. Segundo ela, a efetiva proteção de áreas indígenas e quilombolas nunca ocorreu, sendo necessário um “planejamento territorial estratégico”. Entretanto, apesar de se opor a problemas como grilagem, desmatamento e incêndios nessas áreas, condiciona a conservação desses territórios a uma “revisão” do Congresso, buscando “torná-las geradoras de riqueza e capazes de produzir alimentos e minérios estratégicos”.
A candidata defende que é preciso mudar os paradigmas de ingerência internacional, de ONGs, crime organizado e madeireiras. Fica evidente o esforço de conciliar o inconciliável para condicionar o uso dos territórios a uma suposta “sustentabilidade econômica” permitindo atividades de mineração, por exemplo, nesses territórios. A candidata pertenceu à base de sustentação de Jair Bolsonaro no Senado, explicitamente contrário à demarcação de novas terras ou ampliação das existentes.
Simone Tebet (MDB) também assume o compromisso do respeito ao cumprimento rigoroso dos direitos dos povos originários, bem como se compromete a “acelerar a regularização de territórios quilombolas, com emissão de títulos para povos remanescentes de quilombos" [13]. Contudo, a senadora é frequentemente criticada pela sua associação com os setores ruralistas, possuindo terras que estão dentro de um histórico conflito com indígenas em Mato Grosso do Sul.
As plataformas dos candidatos presidenciáveis enunciam as propostas sobre políticas culturais de maneira transversal a outros campos, setores e áreas, ou em observações gerais sobre políticas públicas direcionadas a um conjunto de sujeitos de direitos particular, como no caso de povos indígenas, quilombolas, pessoas com deficiências, dentre outros. Mesmo as proposições mais pontuais não conseguem estabelecer aproximações entre si.
No entanto, as duas primeiras partes deste artigo demonstram que há muitas pautas comuns disputadas entre esquerda e direita; em certas plataformas há contradições agigantadas entre o discurso da promessa e a história política do partido-coligação e do candidato, principalmente nas suas posturas dentro dos debates legislativos sobre esses pontos no Congresso. Onde ficam então as propostas do atual governo? Existem? Cenas de um próximo café.
*Rodrigo Vieira, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa, Coordenador do Curso de Direito da mesma instituição e membro associado do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais – IBDCult
Notas
[1]https://www.nonada.com.br/2022/09/simone-tebet-diz-que-vai-fortalecer-leis-rouanet-e-aldir-blanc-em-plano-de-governo/
[3]https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-felipe-davila.pdf
[4]https://static.poder360.com.br/2022/08/Plano-de-governo-Soraya-Thronicke.pdf
[5]https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/BR/544/candidatos/884623/PROPOSTAS.pdf
[6]https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-felipe-davila.pdf
[7]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc71.htm
[9]https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/BR/544/candidatos/898012/5_1659739349964.pdf
[10]https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2022/BR/BR/544/candidatos/893498/5_1659820284477.pdf
[11]https://static.poder360.com.br/2022/08/programa-de-governo-eleicoes-2022-poder360-felipe-davila.pdf
[12]https://static.poder360.com.br/2022/08/Plano-de-governo-Soraya-Thronicke.pdf
[13]https://static.poder360.com.br/2022/08/diretrizes_simone_tebet.pdf
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