Associar “Ceará” e “humor” já parece lugar comum, mas quando se acrescenta a palavra “cinema” alguns elementos precisam ser evidenciados para demonstrar que esse triângulo é realmente amoroso e frutífero.
Contam os historiadores que a difusão inicial dessa atividade audiovisual no Estado – não é piada – coube a um cego. Quem sintetiza o feito, aliás, é um dos mais renomados cineastas do Estado, Rosemberg Cariry, ao lembrar que “de todas as atrações levadas aos sertões pelo Cego Aderaldo, a que mais admiração causou foi a do cinema. A partir de 1933 – depois da grande e terrível seca -, ele e sua trupe peregrinaram por todo o Nordeste levando uma velha câmera Pathé Baby e alguns rolos de filme...” (1).
Ainda nesse universo empresarial, outro cearense ganhou destaque em todo o Brasil, Luiz Severiano Ribeiro, que criou uma rede de salas de cinema tão belas que, por exemplo, a que originalmente abrigava o Cine São Luiz, em Fortaleza, é tombada pelo patrimônio cultural do Estado.
A mencionada casa de exibições, aliás, foi o palco principal que décadas a fio recebeu, nos meses de férias escolares, as produções de outro cearense, agora, aparecendo na tela, fazendo exatamente o que dele se esperava, provocar o riso da assistência: Renato Aragão, geralmente acompanhado dos Trapalhões.
Evocando de forma recriada e singular os distintos tempos mencionados, contemporaneamente estão em cena projetos cinematográficos de Tom Cavalcante, Tirulipa e dezenas de outros cearenses que se reúnem em projetos como “Os Parças” e “Cine Holliúdy”.
O curioso é que as produções cinematográficas humorísticas que envolvem cearenses geralmente são de empresas do chamado eixo Rio de Janeiro – São Paulo, fato que reafirma, ainda, a ideia (e sobretudo a prática) do Mainstream, que merece todas as atenções, mas não agora, porque é preciso falar de uma relação radicalmente cultural do povo cearense com o cinema, conforme sugerido no título deste artigo.
Não faz muito tempo - até quando ainda existiam cinemas nas ruas da cidade (hoje estão todos em shopping centers) -, que assistir a uma projeção era uma experiência sociológica única, capaz de revelar o mais fundo da “molecagem cearense”, expressão localmente utilizada para identificar não somente o humor agradável, mas o sarcasmo e os métodos coletivos de escárnio.
Para fornecer uma ideia mínima, é necessário recordar que antigamente se comprava o ingresso para o cinema e não para uma sessão específica. Isso permitia que os aficionados entrassem na primeira sessão, ficassem até a última e assim decorassem o que acontecia nas cenas.
Coitados dos próximos espectadores que, ao lado do enredo desenvolvido na tela, eram forçados a escutar os comentários que antecipavam os acontecimentos de cada cena, o que hoje é chamado de spoiler:
“- Ele não tá morto não; tá só inventando (fingindo)”
“- Ô quenga falsa: se fazendo que tá chorando”
“- Se preocupe não, quando tiver faltando um segundo, ele desarma a bomba”
E quando finalmente o vilão se dava mal, quase em coro se escutava a famosa vaia cearense (iiiiiiêêêêêiiiiii...), um escárnio visceral que abala as estruturas de qualquer destinatário dela, seguida de expressões como:
“- Arrocha!”
“- Ande tonha!” e
“- Ainda vai, feladaputa?!”
O fato é que esse comportamento, quase extinto pelas chamadas circunstâncias socioeconômicas e regras de civilidade, apenas confirma, por mais um ângulo de observação, o da atividade cinematográfica, que o humor cearense é um veio de comunicação e relação social, ou seja, do povo, e que os humoristas profissionais são os seus mais visíveis intérpretes e detentores.
*Humberto Cunha Filho - Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, dos livros “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP) e “(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética-SP).
(1) CARIRY, Rosemberg. Cego Aderaldo: o homem, o cantor e o mito. Fortaleza: Interarte, 2017, p. 345
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