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Acesso à cultura, direitos autorais e acervos culturais

Foto do escritor: Blog OpiniãoBlog Opinião

Imagem: Pixabay

Neste ano, a artista Nora Al-Badri foi notícia nos jornais ao desafiar o Neues Museum, em Berlim, digitalizando em 3D e disponibilizando ao público, sem qualquer autorização, o famoso busto de Nefertiti [1], peça de mais de 3.400 anos levada do Egito para a Alemanha no início do século XX por um arqueólogo alemão. Há anos, o governo egípcio tenta reavê-la, mas o museu nega a devolução.


Na mesma toada, a artista, utilizando-se de inteligência artificial e mediante acesso não autorizado à base de dados de diversos museus europeus, conseguiu recriar digitalmente vários bens originários da região da antiga Babilônia como forma de reparação histórica à sua retirada forçada do país de origem, disponibilizando-os na internet e dando acesso amplo e irrestrito a bens culturais que somente estariam acessíveis a quem visitasse tais museus.


O caso chama a atenção tanto para a questão da repatriação de bens culturais levados de seus países de origem de forma ilícita, especialmente por decorrência de relações colonialistas, quanto para os limites dos direitos autorais sobre obras intelectuais que constam nos acervos de instituições culturais, como museus e bibliotecas.


Sobre a repatriação, há normativas internacionais que tratam do assunto. No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) há a Convenção relativa às medidas a adotar para proibir e impedir a importação, a exportação e a transferência ilícitas da propriedade de bens culturais [2], de 1970. Já no âmbito do Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit), há o Convênio Sobre Objetos Culturais Roubados ou Ilegalmente Exportados [3], de 1995.


Ambas as normas regulam a forma como os países signatários devem proceder em relação à repatriação e, apesar de apresentarem problemas de aplicação prática, têm extremo valor por serem diretrizes internacionais sobre como deve ser regulada a questão da devolução e/ou da reparação pela retirada desses bens culturais de forma ilícita.


Por outro lado, a questão dos direitos autorais incidentes sobre obras do acervo de museus e de bibliotecas, e as limitações de acesso que tais direitos podem ensejar, não é tratada, de forma ampla e suficiente, em nenhum documento internacional. Na prática, a legislação de cada país irá tratar de forma própria, o que causa extrema insegurança jurídica.


A própria digitalização dos acervos, medida tomada por alguns museus e bibliotecas para proteger o acervo e dar maior acesso às obras, encontra barreiras nas questões de direitos autorais, pois basta que o autor negue a reprodução de sua obra em meio digital, sem qualquer motivação, para que a digitalização fique inviabilizada.


A questão fica ainda mais delicada quando falamos de obras em domínio público, ou seja, sobre as quais o autor não possui mais o “poder irrestrito” de autorizar ou não o acesso. Em tese, essas obras poderiam ser acessadas por qualquer pessoa, sem necessidade de autorização. No entanto, apesar da obra intelectual estar em domínio público, o seu suporte físico (a tela sobre a qual está a pintura, por exemplo) geralmente tem um proprietário específico, e é este quem decidirá sobre quem terá acesso à obra.


No Brasil, a Lei 9.610/98 [4] não trata, de forma clara e precisa, sobre a questão do acesso à cultura e sua relação com direitos autorais, apenas apresentando exceções pontuais e insuficientes que trazem mais dúvidas do que soluções. A regulamentação dos direitos autorais incidente sobre as obras dos acervos das instituições culturais é um desafio, mas de enfrentamento necessário se quisermos garantir, minimamente, o direito de acesso à cultura que está previsto como direito fundamental na Constituição de 1988.

Cecilia Rabêlo, advogada, Mestre em Direito e Especialista em Gestão e Políticas Culturais. Presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

Notas


[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

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